terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

O Palhaço


 

Trajado com enorme calça florida, que comportaria três pessoas de peso equivalente ao dele, tendo prendido na altura da cintura um bambolê, cosido sob o cós da calça e seguro por suspensórios verdes, que sobrepunham camisa de seda ornada com grandes círculos coloridos; Florentino se sentou diante do espelho.
         Com o coração apertado rememorou pela zilionésima vez do dia em que se despediu de casa. Deixara para trás a mulher que amava, e nela, os olhos lacrimejantes. Eram especiais aqueles olhos transparentes, vítreos, com apenas leves intenções de azul que lhe expunham, sempre, os sentimentos mais profundos.
         Enquanto empastava o rosto com pigmentos coloridos, recordou-se, igualmente, do açude seco, do gado morto, da fome que passara e da dor que sentira ao deixar o sertão baiano motivado pela seca. Partira junto aos mambembes para São Paulo carregado por sonhos de melhores dias. Esquecera-se apenas da promessa feita à mulher de olhos vítreos que retornaria para buscá-la.
         Eram sempre as mesmas lembranças torturantes que martirizavam seu espírito, e nem mesmo o peso dos anos embaçou da memória o gosto do pó, nauseante, na boca árida.
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         Aplausos, longínquos, vindos da tenda principal e o tique-taque do relógio sobre a penteadeira apressaram-no na composição da caricata figura. — O retoque dado a lápis na maquiagem enegrecia os contornos dos desenhos pigmentados. — Calçou-se rápido com os descomunais sapatos pretos. Colocou o nariz, vermelho, preso por um fino elástico, transparente, que findaria a formação da figura dramática, não fosse o vazio da calça, onde andando, preencheria com bexigas coloridas às quais enchera pacientemente com gás, confetes e purpurina na noite anterior. — Concluído por definitivo o personagem, o Palhaço Zequinha rompe o picadeiro dando saltos e fazendo piruetas.
         As piadas encenadas, as gargalhadas, as bexigas cheias de confetes, gás e purpurina que eram estouradas e distribuídas no auditório, ou ainda, os refletores e os trapezistas que flutuavam sobre sua cabeça não impediram o aperto no peito ao ver na primeira fila os mesmo olhos límpidos que a pouco recordara. Tais lembranças retornaram dilacerantes. O Palhaço reparou, também, numa criança-adulta ao lado da mulher de olhos vítreos, como se ela, a criança-adulta, renovasse-lhe as feições... Seria?
         O palhaço voou em direção ao casal. Os olhares mais uma vez se cruzaram. Contudo, desta vez, a densa maquiagem não o protegeria da pergunta explodida da senhora de olhos cintilantes, quais vitrais, com leve caráter azul:
         — FLORENTINO?!
         Paralisado ficou o palhaço. Braços abertos estendidos no ar. A criança-adulta não esperou resposta, levantou-se e pulou a pequena balaustrada. Os seguranças tentaram contê-lo. Não conseguiram... Um abraço forte... Um grito:
         — PAI?!
         Aplausos! Muitos aplausos às custas de uma vida em meio a lágrimas...


 

 

 

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