terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Síndrome Facebookiana.


            Fui procurar um psiquiatra, era a primeira vez que eu aceitava uma sugestão tão vexatória...  Ao chegar à sala de recepção impressionou-me o tom pastel da parede mostarda claro, a música ambiente e a calma inspirada pelo local. De cara percebi na parede réplica de um quadro de Diego Rivera e outra de Hieronymus Bosch,  que me diziam, por dedução, que os psiquiatras eram PT.  Os direitistas preferem os clássicos renascentistas ou barroco, de preferência Velázquez . Os radicais de esquerda dão preferência a Miró, Dali, Van Gogh e Picasso. Após deleitar-me com as obras de arte caminhei até a recepcionista que me perguntou se era minha primeira consulta. Respondi que sim. Ela digitou algo no notebook e Dr. Eugenio Lino apareceu na recepção para indicar-me sua colega, Dr. Nadia.  Alegou ser melhor eu ser analisado por uma mulher. Coisa de Freud. Ótimo, pensei. Esta minha síndrome é coisa moderna e uma mulher poderá me entender melhor. 

Entrei no consultório e sentei-me na poltrona de frente para bela recepcionista onde pude ver a cor da calcinha, cor-de-rosa, quando ela cruzou as pernas. A bela ruiva me ofereceu um café. Eu aceitei. Propus adoçante, caso fosse sem aspartame, e disse: “melhor ainda com leite”. Ela disse “tem”. Em seguida se levantou e entrou num compartimento separado por um biombo e retornou com o menorzinho numa bandeja em pires e xícara de porcelana branca. Peguei-o da bandeja e pude notar, quando ela se abaixou para me servir, um belo par de seios quase fugindo ao sutiã também cor-de-rosa.  Perguntei ansioso se seria logo atendido, ela apontou para um pequeno lustre, preso ao lado de uma das portas, aceso em vermelho. Depois me disse: “quando ficar verde o senhor poderá entrar”. Não conseguia parar de olhar para recepcionista que, após levar de volta a bandeja, sentou-se e continuou digitando algo em seu aparelho. Tentei puxar assunto e perguntei a ela o nome. Ela respondeu “Ângela” sem retirar os olhos do livro eletrônico. Bebi o café lentamente mirando ora as belas pernas de Ângela, ora a luz insistentemente vermelha. Após beber o café, para não incomodá-la, levantei e levei os utensílios para trás do biombo colocando-os sobre a bandeja. Quando retornava a poltrona à luz miraculosamente esverdeou e abrindo a maçaneta entrei. 

Na sala uma mulata, deslumbrante, sentada numa poltrona de encosto alto apontou o divã, branco, e disse: “sente-se e relaxe”. Sentei-me como se sentasse numa cadeira. Ela perguntou se eu não queria me deitar eu respondi não. Ela não insistiu. Com uma voz suave perguntou qual meu desconforto. Disse: doutora, eu não consigo parar de curtir. Ela olhou-me meio sem entender a frase e perguntou. Como assim. Eu repeti. Não consigo parar de curtir, estou curtindo até foto de bolo. Ela ainda sem entender me sugeriu: “vamos por partes”. Desde quando o senhor curte. 

Respirei fundo e resolvi deitar no divã. Fechei os olhos, e disse: Tudo culpa de Guiga. Sim. Culpa de Guiga. Ela intercedeu. “Quem é Guiga?”, Respondi: é meu irmão. E expliquei: Eu vivia bem até Guiga me presentear com um microcomputador e me fazer criar um perfil no Facebook. 

Sim. Disse ela, curiosa: “continue”. Eu continuei. De início, doutora, eu só curtia postagens de relevância, postagens que me tocavam na profundeza da alma. Coisas como uma pintura de Dali, uma música do Djavan, às vezes, quase a contra gosto, curtia uma foto com dizeres de autoajuda. Mas, aos poucos, fui cedendo à tentação e iniciei a cutucar de volta quem me cutucava. Fui aderindo os amigos que me solicitavam, e comecei a compartilhar também. Não demorou e eu me metia nos mais diferentes assuntos. Comecei a comentar, indiscriminadamente, sobre qualquer tema. Cheguei ao cúmulo de não acreditar que a direita golpista usara o mensalão, não como um artifício político-eleitoral, e sim, que fora usado como uma conspiração para volta da ditadura militar no Brasil e que eles queriam dar um golpe de estado para derrubar o PT... 

“Calma, Sr. Ricardo.” Ponderou a doutora.  Balançando, involuntária e insistentemente a perna e repetindo estou calmo, estou calmo... eu conclui... mas isso não é o pior, doutora. Hoje me peguei desejando parabéns para o aniversário de uma confeitaria, e, no sábado passado, atendendo apelo insistente de meu filho fomos à praia. Lá, por um desses inexplicável mistério da vida, fui cantado por uma deslumbrante jovem. Só que, ao invés de sair com ela ou pedir o telefone perguntei se ela me aderiria no facebook. 

 A doutora, sem pestanejar, perguntou-me: “posso acessar sua página?” Imaginando que ela me analisaria, dei meus dados do facebook e descobri que ela também era minha amiga virtual. 

Ela veio até onde eu estava deitado, olhou-me nervosa, me segurou pelos cabelos e batendo violentamente minha cabeça contra o divã gritou: VOCÊ  CURTE QUALQUER PORCARIA, SÓ AS MINHAS POSTAGENS VOCÊ  NÃO CURTE... POR QUE VOCÊ SE NEGA A CURTIR MINHAS POSTAGENS... POR QUÊ?!...         

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Xaréu


 

        Quando criança, costumava, nas férias, acordar e ir à praia para assistir arrastões. Deslumbrava-me ver os pescadores invadirem as águas do mar, e de lá, buscar os peixes que eu saboreava de diversas maneiras, preferencialmente, nas moquecas feitas por Maria. Mulher humilde, de nenhuma letra, mais muito culta nos sabores baianos. E numa dessas vezes, fui notado e convidado por um jovem pescador de nome Pepira a acompanhá-lo. É essa é a história.

Era cedo para o dia. Cedo também para mim na busca de uma vida de obrigações. Mas, eu andava ao nascer do astro rei, prelúdio da manhã, com Pepira, beirando o mar e observando a maré. Naquele dia, em especial, o sol demoraria a sair devido ao cinza escuro que encobriu a linha imaginária no vergar do oceano...

— Olha, Zé! Ta vendo!? Lá no fundo! Não está vendo o encrespado da água!? É xaréu! Cardume grande vindo pra beira. Vou buscar meu povo. Fique de olho. Olha lá, Zé! — Pepira, eufórico, repetiu a sentença apontando o dedo para o cardume de peixes:

 — Lá por baixo das gaivotas, não está vendo!? É tainha e xaréu. Vou correndo. Prenda os olhos nas gaivotas ou no encrespado da água e não perca de vista... Volto já.

Ele saiu numa carreira só. Eu fiquei ali espiando sem ver, mas fingia avistar, o cardume crispando na flor d’água. — Estava frio. Não o frio seco da serra de Vitória da Conquista, onde eu morava. Era um frio diferente. Era um frio úmido de vento cortante e de fazer tremer o queixo, era frio salitrado.  — Pepira corria para, em meio às cabanas de taipa, gritar:

— Xaréu!... Xaréu!

E eu o olhei de longe berrando e correndo em disparada e, novamente, voltei meus olhos para nada ver na flor d’água a não ser o grande azul.

Atendiam aos gritos homens fortes, velhos e moços. Corriam em direção às canoas na praia do "Chega Nego". Toros, feitos com troncos de bananeiras, eram subpostos como rodas e a revezá-los sob os barcos, os homens empurravam as embarcações que escorriam sobre os troncos em direção ao mar até atingirem a linha d’água. As ondas da maré alta elevavam a proa das canoas em direção ao céu onde estouravam fazendo surgir da espuma expandida belos arco-íris. As mesmas pessoas que empurravam as frágeis embarcações entravam totalmente na água e se dependuravam nos bicos e nas laterais impedindo-as que virassem.

Já de pé sobre o barco maior, imponente, Pepira gritou:

— Vem Zé!, monta logo, corre! Vem! Eu ajudo...

O medo que se apossava de mim foi espantado pelos gritos alegres dele. E eu, menino de rio, tremendo de frio, pulei as espumas das ondas arrebentadas enquanto corria até a popa da canoa, oposta a proa, de onde Pepira continuava a reger os bravos pescadores:

— Ajude  ele! O menino é nadador. Ajude ele a subir!

Ainda me lembro das mãos ásperas de um galego forte que me segurou pelas coxas finas e me jogou para dentro da canoa maior. O solavanco levou-me a cair sobre uma macia rede de náilon.

A canoa que eu estava ia à frente com Pepira vogando e cantando no ritmo das remadas firmes. A chuva prevista iniciou mansa e foi ganhando força. E engrossava os pingos dando maior beleza ao tapete azul do mar na medida que encrespava ainda mais os respingos provocados pelos peixes que agora eu podia ver nitidamente. O cardume serpenteava indo e voltando. Alguns peixes pulavam a esmo, outros, invadiam as embarcações. Quando chegou o momento de jogar a rede, Pepira gritou:

— Arria! Arria! — Os dentes brancos dele me mostravam a alegria dos que vão buscar a vida sem medos, onde o trabalho é só gozo.

A bracejar, a tresmalhos era solta pontilhando o mar com bóias brancas, de isopor, enquanto a chumbada, pesada, afundava sua parte de vez. E assim era feito o cerco em arco. Os canoeiros começavam, então, a bater os remos na água com vigor.

Pepira atirou-se ao mar da proa da canoa e foi nadando e gritando:

— Vem Zé! Ajuda a cercar!

Seguindo seus comandos eu me joguei atrás dele:

— Espanta pra rede! — ele gritava — Vai, Zé! Bata na água! Espanta pra rede...

Um vulto escuro se desviava dos sopapos dados por mim na flor d’água, enquanto, nadando, eu fui cercando os peixes onde a trama de náilons não havia chegado. Quando me cansava, com o corpo gelado e dolorido, apoiava-me numa embarcação para que outras gentes se atirassem em minha substituição.

Só Pepira não buscava descanso. Só Pepira não sentia frio. Só Pepira não tinha medo dos peixes acertando seu corpo. E sorrindo gritava me incentivando:

— Venha, Zé. Está gostosa a água... 

E lá ia eu de novo. Engolindo o cansaço para dar tapas e mais tapas na água e sentir os toques de peixes e mais peixes em fuga no pavor dos caçados. Mesmo exausto, busquei forças e, com os lábios arroxeados e os dentes batendo, continuei nadando e dando novos tabefes para espantar os peixes de volta para rede até chegar à beira da praia, onde, quase sem forças, pude buscar outro curto descanso. Mas, atrás de mim, já vinha Pepira gritando e trazendo a corda da rede de arrasto arrumando os homens e elevando o grito:

— Vem, Zé! Não afrouxa não! Vem que a corda é dura e um "homem" só faz falta.

Os homens do arrastão se perfilavam para puxar o cordão grosso de sisal. Calejavam ainda mais as mãos ao arrancarem delas carnes mortas que ensebavam as tramas.

E eu lá, entre eles, sangrando as minhas mãos finas de menino e ouvindo Pepira cantar:

— Arabô aiô Iemanjá! Puxa a corda nego que tem peixe bom / puxa nego / puxa nego / que é benção de Iemanjá... 

Era um consoar de arrepiar os cabelos e de aliviar sofrimentos. Eram mais de trinta vozes, a cantar em coro, num gemer só: Rum / rum / rum // rum / rum / rum. — Era um som nasalado e de esplendorosa beleza. — Os corpos sincronizados oscilavam num vai e vem de meneio, suplantando as dores, puxando a tresmalho como em um cabo de guerra, até os peixes darem na areia e brilharem prateados ao se debaterem.

Enquanto alguns dos homens catavam os peixes, Pepira brincava de matar caçonetes intrusos a pauladas. O sangue que escorria deles avermelhava a espuma que lambia a areia úmida.

Os pescados eram amontoados no centro da praia e os homens formavam um circulo em torno esperando a partilha. 

Pepira se colocou no centro e ao lado do amontoado de peixes. Eu fiquei no círculo enquanto a chuva, grossa, tirava-me o sal da pele. Um dos homens que chegou depois tentou me espantar. Pepira gritou:

— Deixa o menino! É nadador! É de coragem! E você, negão? Ta molhado é de chuva! Nem suou! Mostra as mãos... Amostra!... Saia você, descarado! Mão branca!

O suor espantou-me o frio, o sangue em minhas mãos, o medo. E eu ganhei o respeito de todos. O respeito de quem foi à vida com coragem de enfrentar seus temores... E ganhei meu quinhão de peixe. E ganhei o sorriso de Pepira, como um troféu, ao esfregar a mão rude e fétida sobre meus cabelos lisos. Mesmo sendo cedo para o dia. Mesmo, que para mim, ainda fosse cedo para uma vida de obrigações.

Alguns anos se passaram até que eu pudesse voltar à praia do "Chega Nego," em Salvador. Fui com meu filho. Saímos cedo para o dia. Queria que ele visse um cardume de xaréus crispando o mar. Mas, não havia mais xaréus. Como não havia mais vila de pescadores com suas casas de taipa. Como não havia mais canoas para romper a crista das ondas que, ao estourarem, faziam formar lindos arco-íris no ar. Como não havia mais nem mesmo as redes estacadas e esticadas para os silenciosos remendos nos buracos abertos por caçonetes intrusos. — “Momentos mágicos de silêncios e preces." — Nem mesmo Pepira estava lá para cantar seus jongos e dar lições de coragem. Lições que um menino com frio e com medo aprendeu. Lições de uma coragem de alegria necessária, uma coragem de suor derramado para buscar o fruto a ser dividido por quem se molhou e sangrou as mãos...

E tudo isso acabou em nome de um progresso descompromissado com a natureza, um progresso burro, bruto, enriquecedor para uns poucos, mas de alto custo para todos os humildes que, em nome dele, foram marginalizados.

 

 

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Amor em Wi-fi

       

         Era madrugada, voltara de uma farra com os amigos. Fazia um frio de congelar pinguim quando deitei em minha cama sob o edredom. Sonhei que acordara numa grande festa, onde condicionadores de ar refrigeravam em demasia o ambiente. Os casais, finamente vestidos, rodopiavam em valsas completamente fora do ritmo, já que a banda tocava, em estrondosa altura, o rit  “saia de bicicletinha” da banda Aviões do forró.

Andei até o balcão ao fundo do imenso salão na tentativa de beber um conhaque ou mesmo um gole de cachaça para me aliviar do frio intenso. Então, apareceu do nada, um Senhor alto e nobre que carregava na mão um estandarte. Ele bateu, firme, três vezes a ponta do cabo do estandarte, de prata, no chão de mármore, interrompendo o festejo. Vinda do outro lado do salão uma voz feminina perguntou-lhe:

— Senhor! Encontrou o amor? Ele ainda existe?

Ele, secamente, respondeu: “Não. Não existe mais amor.”

Olhei o rosto dos casais mais próximos e pude notar, nitidamente, a decepção impressa em seus semblantes ante a triste notícia. 

— Ele completou: “Percorri o mundo, andei em terras, naveguei em mares, viajei por locais onde nem a luz do sol se atreveu a ir e só encontrei desilusão.”

Um véu cinza, formados por nuvem de microchips, inexplicavelmente, também  surgido do nada, preencheu o salão que antes fora multicolorido. Crianças, das mais diversas nacionalidades e raças, correram ao encontro do homem e prostraram-se a sua frente. Estavam aterrorizadas. Uma delas, engolindo as lágrimas, abraçou as pernas de uma jovem que estava próxima a ela e gritou:

— Mãe, você mentiu para mim, você disse que me amava!

Aos que ouviram o lamento da criança, em uma cena deprimente, choraram em convulsão. Outros, sem saber bem o que estava acontecendo, puseram as mãos na cabeça e saíram a perguntar por onde passavam “o que foi?”, “o que foi?...” 

Tons dissonantes soaram mais forte de sobre o palco. A banda, que agora tocava a marcha fúnebre numa pegada de lambada, fazia que as bailarinas perdessem o rebolado numa estranha coreografia.

Os corações palpitantes dos corpos dos casais, agora nus e desesperados, tentavam em vão se consolar através de mensagens cifradas. As paredes firmes do salão foram se liquefazendo e o piso, antes de mármore, tornou-se um emaranhado de fios e luzes. Todos os do local, desesperados, olharam as crianças se transformarem em máquinas frias, cujo uso, agora, tinha a função doméstica de preencher espaços e comemorar datas festivas. E quando o mesmo processo iniciou entre os adultos e seus braços e pernas se transformavam numa rede de finíssimas fibras ópticas, e os rostos se transmutaram para compor telas de cristal líquido,  o Senhor ergueu o estandarte e gritou: “Fria e eterna necessidade! Se cada um é suficiente a si, por que buscar o amor? Vocês se fizeram seu próprio carrasco.  Que agora paguem o preço!”

         Acordei assustado. Joguei fora meu Ipod pela janela e saia apressado para casa da namorada, e, sem mínima explicação, levei-a ao motel mais caro da cidade para pedi-la em casamento.

 

Santa Cruz Cabrália – Bahia -  agosto de 2012

 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Barco de papel.


 

Quando criança, eu esperava as tempestades das águas de março... 

O papel ofício, roubado do gabinete de meu pai, era parafinado com os tocos de vela, que eu guardava, quando a troca era feita por minha mãe, em honra de a Santa Teresa de Lisieux. Deitava a folha branca em piso liso e, meticulosamente, ia impermeabilizando-a com a parafina em verso e anverso. As dobras, no papel, se repetiam até está concluído o chapéu de Napoleão. Era assim que o chamava na décima dobradura, quando, com lápis de cera, eu desenhava seus navegadores. Meus personagens preferidos, riscados a cores, na ponta do chapéu, eram os piratas Barba Ruiva ou Barba Negra. Ao desenhá-los, com o tapa olho, eu os imaginava gritando: “Todos ao convés, pestilentos; carregar os canhões” e quase que via as naus espanholas tentarem fugir da salva de tiros que derrubava mastros e velas ao gritar: “Preparar; apontar; fogo!”. E partíamos atrás, para abalroá-los, navegando “a todo pano”. Imaginava os tesouros que enterraríamos em ilhas paradisíacas e desertas no mediterrâneo, antes de irmos nos embriagar com as dançarinas de Ula Ula em Tortuga... Mais quatro dobradas e minha embarcação ficava quase pronta. Faltava desenhar as escotilhas e por a âncora, que fazia com um clips e um pedacinho de cordão.   Quando minha mãe se distraia, eu pegava um ou dois marinheiros, raptados do Forte Apache que meu irmão caçula ganhara no Natal. Outra opção era fazê-los com massa de modelar, quando as tinha para isso, e pronto, era só esperar a chuvarada.

O céu cinza escuro terminava por deixar a chuva cair e, novamente, escondido, eu saia pela porta do fundo de minha casa e subia a rua correndo para soltar o barco na corredeira da sarjeta, que a água límpida trazia de volta, na Avenida Paulo VI, até a porta de casa. Assim eu ficava indo e voltando sob a chuva, a navegar os sete mares, isso,  enquanto não era descoberto por algum vizinho fofoqueiro ou pela empregada para me denunciar. Eu acreditava que me deduravam por inveja, mas minha mãe dizia, enquanto me enxugava para poder trocar de roupa,  que era “por quererem o meu bem”. Não sabiam eles que chuva não mata? E por “quererem o meu bem”, eles só conseguiam encurtar minha alegria, estancar minha felicidade. Daí concordar com a frase que hoje pouco ouço, mas meu pai a dizia sempre: “De boas intenções o inferno está lotado”.

 Ricardo Matos

Santa Cruz Cabrália – Setembro de 2012   

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Como nasce um poeta.


            Ela não pretendia ter mais filhos, tinha três, dois homens e uma mulher. Mas numa dessas noites que eles transbordavam alegrias, após sorverem borbulhante Moet Chandon, no outono de suas vidas, eles resolveram se amar intensamente. Na luxuriante noite, reservas à parte, um óvulo esquecido resolveu abrigar  um vitoriosos invasor. Pouco tempo depois, náuseas e antipatia a odores fortes denunciaram a intenção divina de lhes proporcionar um novo desafio. Não era hora. O jornalista, assustado, pensou em aliviá-la da nova carga. Ela, em dúvida, ressequida entre o medo do procedimento médico e da dura labuta da realidade enfrentada. Mas, ao vislumbrar a angustia da amada, o jornalista se encheu de brios e sentenciou: “é só mais uma boca”. E a união entre o invasor e sua maculada morada fundiu-se em cadeias de DNA, formando proteínas absorvidas dos saís carbonatos que circulavam no viscoso líquido carmim.

Com o passar do tempo, absorvendo cada vez mais partículas da natureza se uniam e se subdividiam multiplicando em diversas formas, dando, a cada uma delas sua função. Não demorou a se tornar mais um ser que romperia, mais tarde, o confortável invólucro em busca da luz. E assim nasceu este poeta descarado.

   


 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

O Palhaço


 

Trajado com enorme calça florida, que comportaria três pessoas de peso equivalente ao dele, tendo prendido na altura da cintura um bambolê, cosido sob o cós da calça e seguro por suspensórios verdes, que sobrepunham camisa de seda ornada com grandes círculos coloridos; Florentino se sentou diante do espelho.
         Com o coração apertado rememorou pela zilionésima vez do dia em que se despediu de casa. Deixara para trás a mulher que amava, e nela, os olhos lacrimejantes. Eram especiais aqueles olhos transparentes, vítreos, com apenas leves intenções de azul que lhe expunham, sempre, os sentimentos mais profundos.
         Enquanto empastava o rosto com pigmentos coloridos, recordou-se, igualmente, do açude seco, do gado morto, da fome que passara e da dor que sentira ao deixar o sertão baiano motivado pela seca. Partira junto aos mambembes para São Paulo carregado por sonhos de melhores dias. Esquecera-se apenas da promessa feita à mulher de olhos vítreos que retornaria para buscá-la.
         Eram sempre as mesmas lembranças torturantes que martirizavam seu espírito, e nem mesmo o peso dos anos embaçou da memória o gosto do pó, nauseante, na boca árida.
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         Aplausos, longínquos, vindos da tenda principal e o tique-taque do relógio sobre a penteadeira apressaram-no na composição da caricata figura. — O retoque dado a lápis na maquiagem enegrecia os contornos dos desenhos pigmentados. — Calçou-se rápido com os descomunais sapatos pretos. Colocou o nariz, vermelho, preso por um fino elástico, transparente, que findaria a formação da figura dramática, não fosse o vazio da calça, onde andando, preencheria com bexigas coloridas às quais enchera pacientemente com gás, confetes e purpurina na noite anterior. — Concluído por definitivo o personagem, o Palhaço Zequinha rompe o picadeiro dando saltos e fazendo piruetas.
         As piadas encenadas, as gargalhadas, as bexigas cheias de confetes, gás e purpurina que eram estouradas e distribuídas no auditório, ou ainda, os refletores e os trapezistas que flutuavam sobre sua cabeça não impediram o aperto no peito ao ver na primeira fila os mesmo olhos límpidos que a pouco recordara. Tais lembranças retornaram dilacerantes. O Palhaço reparou, também, numa criança-adulta ao lado da mulher de olhos vítreos, como se ela, a criança-adulta, renovasse-lhe as feições... Seria?
         O palhaço voou em direção ao casal. Os olhares mais uma vez se cruzaram. Contudo, desta vez, a densa maquiagem não o protegeria da pergunta explodida da senhora de olhos cintilantes, quais vitrais, com leve caráter azul:
         — FLORENTINO?!
         Paralisado ficou o palhaço. Braços abertos estendidos no ar. A criança-adulta não esperou resposta, levantou-se e pulou a pequena balaustrada. Os seguranças tentaram contê-lo. Não conseguiram... Um abraço forte... Um grito:
         — PAI?!
         Aplausos! Muitos aplausos às custas de uma vida em meio a lágrimas...