O Legado é homenagem que presto a meu Pai, o escritor e jornalista Ariovaldo Matos.
O Legado
Domingo, chovia torrencialmente quando Víviam, a filha mais velha de Zé Ricardo, terminava de redigir um texto atendendo ao pedido da professora de português. Fora solicitado à jovem que fosse dado enfoque romanesco ao descobrimento do Brasil. Ela estava ansiosa para ir ao encontro do irmão Ricardo, o caçula, e da irmã intermediária, Vanessa. Eles haviam saído cedo para passarem o dia no Shopping. Víviam ficara em casa para cumprir tarefa escolar e assim que a concluiu, com o caderno em mãos, correu para mostrá-la ao pai.
— Pai, veja se está bom.
— Tenha calma, filha! Deixe-me, ao menos, me sentar... relaxar.
Zé Ricardo sentou-se na cadeira junto à mesa, e leu, atentamente, o escrito redigido pela filha:
“Existe um lugar onde a natureza se esmerou em tornar belo, abundante em riquezas naturais e de clima ameno. Nesse local habitava um povo dócil, meigo, beirando a inocência. Eles viviam da caça e da pesca e costumavam andar nus. Tinham por hábito banhar-se nas límpidas águas que escorrem em busca de um mar morno e aconchegante. Acreditavam em Deuses bondosos e provedores. O que não imaginavam, é que do além mar, partia esquadra que mudaria toda essa história.
A mando do rei de Portugal, o bravo navegador de nome Pedro Álvares Cabral, junto à tripulação de igual coragem, saiu em busca de um novo caminho marítimo para Índia, vindo dar em costa Pataxó em 22 de abril de 1500.
Ao chegarem, foram recebidos de braços abertos por aquele povo amigo que, apesar de não compreenderem a língua dos visitantes, ajudaram a armar uma cruz para verem missa, a primeira em terras brasileiras, sem entenderem patavina daquela mise-en-scène. Mais tarde, muitas outras naus chegaram a suas terras, porém, com o intuito de escravizá-los.
Muitas guerras aconteceram para que os nativos fossem derrotados. Mas, mesmo vencidos, aqueles bugres não se deixaram escravizar. Preferiram morrer e quase foram totalmente aniquilados. Então, os invasores trouxeram outros povos como escravos, vindos da África, que submissos as correntes, viviam nas fazendas de cana de açúcar. Com o tempo muitos desses escravos se rebelaram e fugiram para se embrenhar nas matas. Foi naquela época que nasceu e cresceu a mais bela das princesas, filha do chefe da tribo Pataxó, dando início à bela lenda.
A lenda:
Annãipe saiu de sua aldeia para se encontrar com seu noivo, escravo fugido da senzala de um poderoso Ouvidor. Eles haviam marcado encontro em uma praia do litoral sul no estado da Bahia.
A mando do Ouvidor, o guerreiro cor de ébano, fora caçado e morto. A jovem índia, não sabendo do ocorrido, vagou pelo litoral até encontrar a praia Coroa Vermelha. Após vários dias de espera, Annãipe, desanimada pela ausência de Ogumanê, seu amante. Rogou a Tupã para que o futuro marido a encontrasse. Tupã, sabendo da morte do negro, ficou penalizado. Para consolar a princesa, ele colocou no ventre da jovem virgem a semente paterna do amado para que ela parisse um filho. E, para que o filho pudesse ver o pai, Tupã transformou Ogumanê em estrela. Como já existiam muitas estrelas no céu, Tupã ordenou a Ogumanê que só brilhasse nas madrugadas quando as outras estrelas já não luzissem. Assim, até hoje, no céu da praia de Coroa Vermelha, pouco antes de o sol nascer, reluz a maior de todas as estrelas, que nada mais é que a alma de Ogumanê.
Fim
— Poético! Filha. Parabéns. Você herdou o talento de escrever de seu avô Ari.
— Obrigada pai, mas não exagere.
— Eu realmente gostei. Se não tivesse gostado eu diria. Ari, desde cedo, me alertou sobre o risco de se tecer elogios fáceis. Ele dizia que tal hábito não contribui em nada para o engrandecimento do ser humano, ao contrário, prejudica. Já a crítica embasada em fundamentos estimula o crescimento e ajusta o caminho dos que buscam a inatingível perfeição... Eu gostei do texto, principalmente da lenda. Mas, há um enorme caminho a se percorrer para se almejar ser um bom escritor...
— Pai. Quando o senhor fala de meu avô o senhor fica solene. Acho isso engraçado.
— Você ainda era criança quando meu pai morreu e por esse motivo você não me entende. Era outro tempo. Outros costumes.
— Já li alguns contos dele e os que li me emocionaram. Gostei, em especial, daquele conto em que um rapaz se negou a denunciar seus companheiros políticos, mesmo quando torturado por militares, e depois, jogado em uma viela e encontrado por um deputado disse: “— Intacto, irmão, intacto”. Aí o deputado respondeu: “— como intacto? Você está todo quebrado...” Eu me arrepio toda nessa parte, pai. — Víviam mostra a pele do braço crispada ao pai e conclui — Aí o rapaz responde: “— não, não falo do corpo. Falo da consciência, da honra...” E o deputado, penalizado, não entendia que o “ritus na face dele era um sorriso”.
— Este texto, filha, deu nome ao volume de contos A Dura Lei dos Homens, e faz parte de uma coletânea que Guido Guerra editou sob o título “A Ostra Azul”. Foi publicada quando Ari completou 10 anos de morto.
— Meu avô escreveu algum romance? Ou só escrevia contos?
— Escreveu. O primeiro livro publicado dele foi o romance “Corta-Braço”, que conta a história de uma invasão urbana em Salvador e que deu início ao que hoje é o bairro Liberdade. Além de “Corta Braço” seu avô escreveu outros livros. Que eu me lembre de cabeça, fora “Corta Braço,” seu avô teve publicado: “A Dura Lei dos Homens”, “Últimos Sinos da Infância”, “Colagem Desvairada em manhã de Carnaval”, “Teatro” esses foram livro de contos; publicou também o romance “Os Dias do Medo” que circulou 1979. E postumamente Guido Guerra publicou seleção de contos de Ari “A Ostra Azul” e têm ainda dois inéditos: “O Quinteto de Ondina” e um que Guido irá editar: “Anjos Caiados”. Além desses, seu avô escreveu várias peças teatrais, muitas delas premiadas. Teve uma peça que foi adaptada para TV e outra para o Cinema. Ari era retado. Mas eu também dou minhas porretadas... Claro que não tenho a qualificação técnica de um escritor maduro como seu avô, filhota. Mas já escrevi alguns contos. Quer lê-los?
— Quero.
— Pegue lá em meu quarto, está dentro do armário, do lado direito, na parte de baixo. Coloquei em uma caixa de papelão, vá lá apanhar.
Víviam correu para o quarto, encontrou a caixa de papelão, empoeirada, retornou com ela e entregou ao pai. Ele, cuidadoso, limpou a caixa de papelão, abriu-a e retirou páginas de papel ofício datilografadas. Então mostrou, com orgulho, sua criação literária:
— Leia este aqui.
Ao entregar o texto a filha, pediu:
— Leia com calma.
A jovem leu:
“O Anjo.
— Creiam-me... — Gritou o réu ao se levantar.
O juiz martelava a mesa, insistentemente, pedia ordem no tribunal enquanto um burburinho soava do auditório.
— ...eu sou um anjo! — Completou o réu ao estacar-se de pé.
— Silêncio! Ou evacuo o recinto... — Ordenou, irritado, o meritíssimo juiz.
— Data vênia, Excelência... — De supetão, levantou-se também o advogado da defesa com o braço levantado, o dedo em riste, e argumentou:
— É de fundamental relevância ouvi-lo, excelência. Pois que a tese da defesa está centrada na crença do acusado...
— Protesto! — Gritou o promotor público e aduziu:
— O réu dará seu depoimento quando for ocupar a tribuna... — As vozes vindas do auditório se abrandavam quando o juiz arguiu incisivo:
— Protesto negado! Concedo ao réu dirigir-se à corte, e completou: — quero ordem no tribunal!
Os advogados se sentaram. O silêncio, aos poucos, se instalou no recinto. O réu permanecia de pé. O juiz, quebrando o silêncio, ao réu perguntou nome, endereço, a natureza do crime pelo qual estava sendo julgado e se era inocente ou culpado. O réu respondeu calmamente:
— Chamam-me Miguel Arcanjo. Eu mesmo não me nomeio por ser parte da Essência Divina e existo ab initio. Dizem-me anjo. Vivo onde vivo que é todo o cosmo do qual também sou parte. Imputam-me o crime de assassinato e dele sou culpado e inocente.
— Protesto! Excelência.
Esbravejou o promotor público de maneira teatral e concluiu,
— O réu está de chacota com a corte.
— Protesto negado!
Arrazoou o juiz ao promotor público e dirigindo-se ao réu perguntou:
— É culpado ou inocente, Sr. Miguel Arcanjo?
— Por libertá-lo e purgá-lo sou culpado, Excelência. Por ceifar sua fé na necessidade da vida sou inocente.
— Explique-se melhor, Sr. Miguel Arcanjo. — Impôs o magistrado.
— A humanidade, por estar engatinhando em sua existência, vagueia por misteriosa escuridão. Os claustros mortos-vivos, que se denominam humanos, são tentados mais facilmente a abusos e más ações respaldados na sua gula de poder e de ouro do que ao amor e à cooperação mútua...
Do auditório, um senhor gordo, alto, de modos rudes, interrompeu-o no discurso e gritou:
— Claustro morto-vivo é a puta-que-te-pariu, maluco!
O público do auditório gargalhou em zoada. Até entre os sisudos membros do jure notou-se risos.
— Silêncio! — Martelou a mesa, ao grito, o juiz e ordenou:
— ...continue, Sr. Miguel Arcanjo... Mas alinhe-se ao que interessa ao tribunal, ou seja, o caso.
Batendo a cabeça afirmativamente, Miguel Arcanjo seguiu com o depoimento:
— ...Ao desespero estava entregue a vítima. Pensava em se matar inelutavelmente por só conseguir se enxergar e aos seus tolos anseios. — Foge aos claustros mortos-vivos o entendimento do sofrimento universal e da necessária busca por redenção. — E por viverem atrelados a sentimentos egoístas, a medos infantis, a orgulhos abstratos e a insana gana pelo poder e por propriedades, eles, em sua individualidade, são displicentes as Realidades Divinas e vivem imersos na ilusão da ciência, da tecnologia e do progresso. Este falso saber, aceito sem reflexão, é a mais tristes das tentações e a mais perigosa das ilusões. Num mundo que a difusão de informações confunde, ilude e menospreza o sofrimento universal, é usual generalizar as chagas para entorpecer e desvirtuar o espírito do solidário. Em decorrência disto, uns poucos déspotas sobejam seus feitos que são falsamente alardeados para que possam usufruir indevidos lucros financeiros enquanto lançam suas almas ao negro abismo. A eles, aos claustros mortos-vivos, é dada pela ciência a ilusão do desenvolvimento. Porém, em verdade, a cada passo, eles se apartam cada vez mais de Deus e de sua Divina Sabedoria...
Interrompendo-o, ironicamente, o juiz o questionou:
— Qual a relação que sua retórica, de sentido lato, tem haver com o assassinado?
Sem dar importância à ironia implícita na pergunta do juiz, Miguel Arcanjo continuou com sua defesa.
— ... e ao se apartar da Sabedoria Divina ele, o claustro morto-vivo, que se nomeava doutor Evilázio Montalvom, passou a desejar ter o que não lhe era destinado. Assim, o assassinado, ao qual Vossa Excelência se referiu, ansiou como anseia cada um dos claustros mortos-vivos e se excedeu em paixão e em dívidas. E para tentar saneá-las, mais e mais dívidas se multiplicaram em acréscimo. A ponto de ele não conseguir sequer a paz. E como a fome dos usurários pelo lucro é cruel e crescente e suas almas são frias como os cofres de aço onde acumulam suas ilusões. Esses usurários o atordoaram com muito empenho na cobrança e dele tiraram tudo. Até o espírito do infeliz foi dizimado. Desempregado, alcoólatra e desesperançado, batido e rebatido pela vida, lembrou-se da catequese e orou por si e, assim, a ele fui enviado. Encontramo-nos e, não por acaso, eu havia trazido uma garrafa de bom uísque...
O promotor público, mais uma vez, interveio zombeteiro:
— Um anjo que traz ao débil alcoólatra uma garrafa de uísque é passível de risos! Afinal, que tipo de anjo é você?
Miguel Arcanjo respondeu, tranquilamente, ao promotor:
— Ao viciado o vício. Até que a vontade do viciado coadune com a vontade de Deus em libertá-lo. Porque lhes afirmo: só Deus liberta.
— Balela! — Retrucou o promotor público e volvendo-se para o juiz pediu,
— Meritíssimo, não vamos nos estender nestas bobagens teológicas. Permita-me apresentar o caso imediatamente...
— Peço ao digníssimo juiz... — Interferiu o advogado da defesa, —... que dê espaço amplo e irrestrito à explanação do réu.
E dirigindo-se a bancada do jure ele solicitou:
— Vamos ouvi-lo...
— Siga com seu depoimento, Sr. Miguel Arcanjo.
Ordenou o juiz. Miguel Arcanjo retomou o discurso:
— Encontrei doutor Evilázio Montalvom aquebrantado física e espiritualmente. Estava jogado como um cão sarnento sob um viaduto. Disfarçadamente me aproximei e ofereci um gole do bom uísque. O pobre indigente aceitou. Bebemos juntos. E quando havia conquistado a necessária confiança perguntei-lhe o motivo do infortúnio e ele me narrou os eventos que o levaram àquela mazela. Disse-me ter sido um homem de títulos e posses, pai de jovem e brilhante médico, casado com uma senhora de bons caracteres e zelosa esposa. Porém, conhecera belíssima jovem anos mais nova que ele e por ela havia se apaixonado. Ela, fingindo amá-lo, fê-lo largar a esposa e filho para com ela se aventurar em negócio aparentemente muito vantajoso. Cheio de sonhos, o claustro morto-vivo hipotecou tudo o que sobrara do divórcio e, quando deu por si, a jovem mulher tinha fugido com todo o dinheiro arrecadado. Assim perdera tudo o que conquistara na vida com muito de suor e sacrifício. Confessou-me, então, querer se matar, pois lhe faltava coragem para suplicar o perdão da família...
O promotor público interferiu com veemência:
— Você quer nos convencer de que o doutor Evilázio Montalvom suicidou-se com trinta e cinco facadas... E devo frisar que a faca foi encontrada em sua mão, logo após o crime, ensanguentada. E sua angelical pessoa estava prostrada sobre o cadáver, encarnado pelo mesmo sangue dos pés à cabeça... Conte outra!
O promotor público ainda com trejeitos teatrais, falou aos jurados com a clara intenção de incriminar o réu antecipadamente. O advogado da defesa colocou-se entre o promotor público e o jure e contra-argumentou que o réu agiu em defesa de suas legítimas crenças e que era necessário deixá-lo concluir. Novamente o burburinho ecoou do auditório e de lá se ouvia gritos de assassino! assassino! e matem-no! O juiz voltou a pedir ordem no tribunal e martelou a mesa repetidamente. Miguel Arcanjo se irritou e dirigindo-se ao público desabafou enfático:
— Vocês se acreditam sabedores dos fatos e nem mesmo sabem que apenas pensam que existem. Acham-se senhores de si. Vocês! Azêmolas! Vocês são incapazes de enxergar luz. Veem apenas ilusões e creem nelas e se cegam frente à verdade. Mesmo assim, tolamente, dão certezas científicas ao nocivo veneno da falsa sabedoria e tão rapidamente as propagam como evolução e progresso que as espalham mais e mais a cada dia. E novas ilusões surgem e são consumidas. E nem bem aceitas, vocês as substituem por outras e o fazem tão rapidamente que nem mesmo as ilusões esquecidas, que eram verdades absolutas, lhes trazem compreensão. Tolos! Tolos! — O réu eleva ainda mais a voz — Vocês falam de mudanças e nada em verdade mudou. Ainda é pesado o fardo da incompreensão, do fanatismo, das paixões desenfreadas, da usura, do egoísmo, da tirania, da inveja, da perversidade, do terror e de tantas outras ações causadoras das fatalidades. Ao cegarem-se as Verdades Divinas vocês fazem perpetuar a fome, as guerras, as pestes e a escravização disfarçada por engodos que os tiranos chamam progresso. Vocês fazem tudo por lucros ilusórios e de falsa propriedade. Nada pertence a vocês... Da fé necessária que vocês deturpam, fazem lucro! Da dor e das doenças, fazem lucro! Da fome e da miséria, fazem lucro! Até da morte vocês fazem lucro! E a cada lucro ilusório que pensam obter mais se afastam da verdadeira Sabedoria. Porque, imbecis, daqui vocês nada levarão. Não levarão sequer uma molécula ou uma mera e vã aspiração. Pois saibam que aqui é o purgatório. Aqui é o reino do tinhoso e a vida em seus corpos podres são suas jaulas! Seus medos, seus grilhões! Seus insanos desejos, a chibata que os martirizam! E apesar da contemporaneidade de seus corpos purulentos, vocês, claustros mortos-vivos, enclausuram espíritos que neles habitam e vivem em temporalidades cósmicas díspares. Enquanto uns poucos se libertam dos jugos milenares, muitos e muitos ainda permanecerão animalescos e por tanto tempo quanto vocês se cegarem a Verdade Divina. E saibam que continuarão carregando no lombo a canga do tinhoso... Nada lhes pertence a não ser a pretensão ilusória do conhecimento...
Durante todo o decorrer do discurso de Miguel Arcanjo, as pessoas do auditório vaiavam e continuavam a gritar: assassino, prenda-o, matem-no, etc. Do outro lado, o advogado da defesa e o promotor público discutiam. O juiz martelava a mesa gritando ordem!, ordem no tribunal! Em resumo: só uns poucos jurados se ligaram ao desarranjo verbal do acusado. Mas, aos poucos, e já com o braço cansado de tanto martelar a mesa, o juiz conseguiu restabelecer a ordem necessária ao andamento do processo. Então, irritado, ele ordenou a Miguel Arcanjo:
— Conclua seu depoimento, Sr. Miguel Arcanjo!
— Então, após ouvir a confissão do doutor Evilázio Montalvom que se mostrou arrependido, eu propus soprar perdão nos ouvidos da mulher e do filho dele e garanti que eles o aceitariam de volta. Porque, lampejos da Verdade são de tempos em tempos dispersos por anjos encarnados. E tais lampejos de luz, ternura, bondade e compaixão flamejam nos corações dos claustros mortos-vivos e alguns deles se descobrem espíritos enclausurados e assim podem enfim serem libertos. Porém, devido ao poder do tinhoso e da natureza dos próprios claustros mortos-vivos, esse fervor de bondade dura breve período. Com o passar do tempo a verdade sucumbi às novas e poderosas ilusões, levando os claustros mortos-vivos a retornarem a escuridão. Então, Excelência, o doutor Evilázio Montalvom me surpreendeu ao querer ouvir sobre a Verdade Divina. E a verdade ele se entregou de imediato a tal ponto que recusando minha oferta me declarou:
— Por agora conhecer a Verdade; ao ver-me diante do infortúnio alheio, não mais me afetarei pelo orgulho das conquistas. Conhecedor desta Verdade sentir-me-ei pequeno, menor que a miséria avistada, por agora saber que foram meus excessos que a criaram. Por favor, anjo. Liberte-me. E... eu o libertei.
Zé Ricardo”
— Gostei, pai. É violento, depressivo, mas gostei.
— Sério!? Gostou mesmo?
— Ah! Qual é, meu velho! Gostei sim... O cara era mesmo um anjo?
— Esta decisão é do leitor. Se anjo ou maluco...
— Para mim, o cara era um anjo vingador. Quem mandou o Sr. Evilázio Montalvom trocar a mulher por uma “periguete”. Bem feito para ele... O senhor tem um estilo diferente, seu conto não é como são os contos que eu li escritos por meu avô. Os dele são mais poéticos.
— Nem todos. Seu avô era um jornalista profissional. Sabia escrever e escrevia coisas lindas. Leia um conto dele intitulado “O Desembestado”.
— Vou ler... Eu li o conto “Rosa tem febre demais”, é muito bonito.
— “O Desembestado” não é tão poético quanto “Rosa tem febre demais”. Porém é mais divertido. Fala de um casal que recebe a visita surpresa de um amigo de infância do marido. Eles têm personalidades distintas. Um deles, o casado, é honesto, pobre e funcionário público. A mulher uma religiosa puritana e pudica, o outro: um aventureiro que desembestara na vida e havia ficado rico, não vou contar mais para não dar spooler... Foi este conto virou peça teatral de sucesso e foi adaptado para TV...
— O senhor o tem aí.
— Tenho. Apanhe na estante um livrinho preto, fino, com a foto de um violino na capa. É um ‘programa’ da peça. Nele tem a transcrição do conto.
Viviam retorna com o folhetim da peça “O Desembestado ou A Escolha” e mais dois dos livros escritos pelo avô: “Colagem Desvairada em Manhã de Carnaval” e “A Ostra Azul”. Ao entregar ao pai, Víviam esclarece:
— Trouxe logo os outros livros que encontrei para não ter que ficar indo buscar uma coisa a toda hora.
Zé Ricardo folheia o ‘programa’, separa o conto e entrega a filha.
— Vou ler. — Diz a jovem.
— Certo! — Concorda o pai.
E assim ela o fez.
“O Desembestado
Naquele frio 21 de junho, a Sra. Zulnara, piedosa e convicta irmã de Maria, contava ao esposo um episódio da existência temporal de São Luis de Gonzaga e ele, já habituado as eventuais crises religiosas de sua companheira, sentia certo prazer em escutar à narrativa que a voz tímida ia desenvolvendo:
— ... e então — disse ela — um terrível surto de peste assolou a cidade de Roma. São Luiz nem padre era, ainda, mas pediu permissão aos superiores do Seminário e saiu a cuidar dos enfermos, a muitos confortando. Aquela moléstia, porém era transmissível e ele também ficou doente. Padeceu dias e dias e, afinal, mártir da caridade, morreu em 1591 com apenas 23 anos mas já estava madurinho para o céu.
— Virou Santo? — perguntou Albano, com algum interesse e uma pontinha de dúvida.
— Sim.
Albano tinha pensado num argumento qualquer, anti-santificador, em que prevaleciam drogas químicas como sulfonas e coisas aparentadas, mas a verdade é que não chegou a concluí-lo mentalmente. Mesmo que tivesse oportunidade de ir além do esboço não o apresentaria a Zulnara. Um dos seus cuidados, com a esposa, e já os tinha desde os meses do noivado, consistia em poupá-la de conflitos íntimos que ele julgava desnecessários. Em todo o caso, o certo é que o argumento anti-glorificador, de elaboração mental apenas iniciada, desapareceu numa fração de segundos, quando a campainha soou, avisando-o sobre estranha presença no apartamento e foi até a porta, para abri-la. Abriu-a sem maior curiosidade, supondo que uma vizinha qualquer perguntaria por Zulnara. No entanto, e de modo surpreendente, quem entrou no pequeno living, aos gritos, foi o Sr. Tancredo Batista D'Almeida.
— Albano, irmão, estou rico!
— Tancredo, amigo velho, eu...
— Estou rico. Albano, mais do que rico!
— Tancredo, eu...
— Mas é uma surpresa, você aqui!
— Rico, Albano, rico! Na verdade, irmão, estou mesmo milionário e numa hora dessas não podia deixar de pensar em você. Albano, dá cá um abração!
Sob evidente excitação alcoólica, Tancredo insistia nas exclamações ruidosas ("estou rico, irmão, estou milionário!") e quando o amigo, sem ter conseguido vencer a surpresa, perguntou se ele tinha sido premiado na Loteria Federal — e afinal era um sábado, dia de extração — o visitante mostrou agressivo desdém ante aquela lamentável prova de ignorância:
— Loteria, Albano? Eu ganhar na Loteria? Está me desconhecendo, irmão? Eu sempre não lhe disse, Albano, que Loteria é jogo de idiota?
Albano permaneceu em silêncio e Tancredo, penalizado, ofereceu o que considerava uma explicação suficiente:
— Fiquei rico, irmão, porque desembestei na vida e quero que você desembeste também.
Zulnara aproximou-se, silente, incapaz de compreender o que se está passando. Tancredo, ao vê-la, delicada e cheia de inquietação, verificou rapidamente que o amigo permanecera fiel à sua preferência pelas mulheres-tipo-caniço, de muita altura, pouca carne e muito osso, indagando:
— É a sua mulher?
Albano bateu a cabeça, ainda zonzo com a tempestade verbal do amigo. Tancredo, muito simples, pediu:
— Dá cá um abração, Madame.
Zulnara estacou, precavida. Tancredo ponderou:
— Não tema, Madame. Mulher de Albano é mesmo que minha irmã e se ele vai desembestar, a senhora desembestará também. Madame, antes de mais nada, fique a senhora sabendo que Albano sempre foi a verdura do meu cozido. Vamos, dá cá esse abração amigo!
Zulnara manteve-se firme, recusando-se ao abração pedido. Mulher de recato, criada no temor de Deus e no amor aos Santos, nunca imaginaria que um tipo visivelmente embriagado tivesse a audácia de lhe invadir o apartamento com aqueles modos grosseiros e todo aquele vozerio. Mostrava-se, assim, mais do que apreensivo. Estava atônita. Temia, sobretudo, que seu valente esposo reagisse à brutalidade com que o visitante continuava a abraçá-lo, sacudindo-o provocativamente. Albano limitava-se a rir, mas qualquer pessoa poderia constatar que ele parecia a pique de fartar-se daqueles excessos.
— Madame — explicou Tancredo — a senhora desculpe a ousadia, vá desculpando esses meus modos e tenha dó do meu palavreado de tabaréu da Bahia, mas há 10 anos, Madame, que eu comemoro a morte daquela besta quadrada que foi Tancredo Batista D'Almeida, a esse Batista ainda fica aí porque mamãe é viva. A senhora acredite, Madame, que isso de mudar de nome, quando o dito é feio e dá peso, é coisa deveras importante. Eu tive um colega que se chamava Praxedes não sei de que, e Albano se lembra dele. Era uma besta, Madame. Nunca soube distinguir os legisladores de Atenas dos Sparta, se lembra Albano? Bom, isso não vem ao caso, o definitivo, Madame, é que era uma besta mas se mandou para os Estados Unidos, aprendeu inglês, virou Pritchard não sei o que mais e ficou rico, mas enquanto Praxedes... A senhora entendeu?
— O senhor entre, convidou Zulnara, com ar resignado, cansada de olhar e escutar, de pé, aquele intruso.
— Qual a graça da senhora?
— Meu nome?
— Zulnara, Tancredo — disse Albano.
— Bonito nome, Madame, bonito nome. Um nome desses não se muda. Mas a senhora já pensou que despropósito seria a senhora tivesse sido batizada como Ocridalina?
Zulnara não lhe deu resposta. Tancredo prosseguiu:
— Vamos deixar de lado essa minha teoria sobre nomes e azar. O importante é que aqui estou, em São Paulo, faço minha comemoração e trago para vocês um convite piramidal. Posso falar livremente Albano?
Albano, meio sem jeito, disse que sim, batendo a cabeça, enquanto Zulnara, impaciente e os pés doendo, mantinha-se calada.
— Bom — disse Tancredo — antes de tudo, Albano, me consiga um uísque ou coisa assim, puro.
O funcionário deslocou-se para a copa e não demorou com o copo centimetrado. Entre for man e for pig estava a dose mas Tancredo não atendeu para o detalhe significativo. O olhar frio de Zulnara começava a inquietá-lo e ele resolveu reagir:
— De saída — disse — conto a vocês que antes de ficar rico eu mofei anos num emprego mixuruca, despachando rumas de processos dos outros, ouvindo resmungos e queixas, espiando e cheirando a miséria dos pobres. Todos os dias, Madame, cinco e seis horas por dia, era aquela miséria fedorenta que é a miséria dos pobres. Todos os dias, Madame, cinco e seis horas por dia, era aquela miséria desfilando na minha cara, diante de minha carteira. Mas, aos sábados, longe daquele fedor, eu me vingava tomando uns porres geniais. Albano, irmão, se eu ainda falo neste assunto, eu que tantas vezes já lhe chateei com ele, é porque fedor miserável continua em mim, dele não me limpei todo... Você tem um bom uísque, Albano. Haisg?
— Johnny Walker — Albano mentiu.
— É um bom uísque.
Tancredo emborcou a segunda e última golada sob o olhar ainda frio de Zulnara:
— Digo à senhora, Madame, que a coisa foi passando, passando, sempre aquele fedor e sempre aqueles porres, mas um dia, a senhora preste atenção, um dia que Deus se fez sozinho, sem assistência do Diabo, me deu o estalo salvador e eu me sacudi: mandei o emprego de barnabé às favas e meti-me de cara nos negócios. Claro que o fedor continuou e continuará os porres geniais, mas eu fui indo, a princípio ganhando de modo aritmético, depois de modo geométrico, e o resultado é maravilhoso, Madame, a geometria é o fino. De sorte que aqui estou, nesta São Paulo imensa completamente rico e desembestado, e tão rico, Madame, que até já comprei no cemitério granfino da Bahia, a minha última morada e botei um bonito anjo de bronze. Vocês porém, não se preocupem que eu não sou de morrer cedo e isto de túmulo, é puro esnobismo. Eu olho é para frente. Porque o que me sobra do passado, além de Mamãe Batista, que é uma santa, é aquele fedor da miséria dos outros, uma coisa que reconheço idiota e que me força, às vezes, a me exceder um pouco nas bebidas, e então vou ficando falador, mas isso os amigos compreendem...
Zulnara não mudou o olhar nem Albano abandonou sua posição. Ouviam-no, somente.
—... Você não compreende, Albano? — indagou, acrescentando logo a seguir:
— Tudo isso, Madame, é só prefácio com meu palavreado de Caititu da Bahia. O importante, Albano, é que quero você trabalhando comigo — e pago o tripulo do que você ganha aqui. Se ajudo todo o mundo que me merece, por que não devo também ajudar você, irmão? Ademais, d. Zulnara, a senhora terá seu ganhozinho. E então?
Agora estavam andando, os três, quase no fundo do living e Zulnara, fazendo-se menos tímida e apreensiva, conseguiu dizer:
— Sente-se um pouco, o senhor... — havia algum calor no olhar e Tancredo o percebeu.
— Nada de sentar, Madame, a senhora que se sente, se acalme e me ouça. Albano, irmão, você me defere outro uísque?
Tancredo alongou a vista pelas paredes do living, notou os quadros em grossas molduras douradas, antigas gravuras de sentido religioso, e forçou a memória:
— Sabe, Madame, eu fui muito católico como vejo que a senhora é. Ia muito à igreja e gostava sinceramente do padre Ovídio. Meu velho é que não tolerava isso. Era positivista, Madame, positivista dos feios, um fanático. Se lembra de meu pai, Albano? Bom uísque esse seu, Albano. Parece Haigs... Eu falava de meu velho. Pois bem, Madame, a senhora imagine que ele arranjou com uns parentes de Lisboa um grande retrato de Augusto Comte, enforcou o bicho num passe-partout preto e desenhou, de baixo, dois versos de Camões que, na minha opinião, deles só um homem é deveras merecedor: Fleming, o descobridor da penicilina. Porque, Madame, só mesmo quem teve gonorréia sabe, Madame... Se lembra, Albano?
Albano estava extremamente inquieto, remexendo-se no soumier e Zulnara, sem compreender o que se passava, perguntou:
— Está sentindo alguma coisa, meu bem?
Tancredo preocupou-se também com o amigo:
— Você tem estado doente, Albano?
Suspirando, o funcionário disse:
— Não foi nada. Uma dorzinha boba, nos olhos...
— Se lembra da frase, Albano?
— Não.
— Eram dois versos de Camões, Madame, lindo versos, assim: Peitada foste... ... Não, não era assim. Um momento. Assim: “Do sol peitada foste, cruel morte para o livrar de quem o escurecia”. Não é lindo, Madame? Com isto, como está evidentíssimo, meu Pai queria dizer que o sol, invejando Augusto Comte, contratou a Morte para levar o invejado para a cidade de pés juntos. Mas quem merece isto é o Fleming, porque...
— Outro uísque, Tancredo? — interveio Albano, nervoso.
— Sim, irmão, aceito.
Albano orientou a conversa:
— Você falava que era católico e então...
— Era mesmo. Meu santo preferido, Madame, era São Domingos Sávio e eu tinha um retratinho dele que o Padre Ovídio me sapecou nas páginas do catecismo. Era um bonito menino e o Padre Ovídio olhava e reolhava o retratinho, com um gosto danado, e ficava repetindo: “não era lindo? não era lindo?”. E depois, Madame, me olhava de jeito esquisito e dizia para mim: “você também é lindo”.
Albano reentra no living com o uísque.
— Se lembra do Padre Ovídio, Albano? Eu contava a d. Zulnara que ele nos ensinou o catecismo e que gostava de São Domingos Sávio. E por falaz nisso, será mesmo verdade o que diziam do Padre Ovídio com aquele garoto...
Zulnara estava distante, pensando em algo, e Albano, de novo vermelho até a ponta das orelhas, interrompeu o amigo:
— Queres gelo?
— Não.
— Gelo é bom, Tancredo.
— Eu gosto puro, Albano, mas vamos deixar de lado o Padre Ovídio. A senhora fique sabendo, Madame, que eu e seu marido éramos mesmo que irmãos. Éramos e somos. “Amigos que nem irmãos”, diziam os invejosos e havia um, chamado Nelson Colarinho, sujeito mau caráter, que um dia chegou a insinuar que eu bancava a galinha para seu marido, se lembra Albano? Tive de lascar uma pedrada genial na cabeça do mau caráter porque amizades como a nossa, naqueles tempos, não eram bem compreendidas. A senhora imagine, Madame, que o filho de uma prima minha cortou os pulsos e quase morreu, esvaindo-se em sangue, porque o pai, um idiota, pensou que ele bancava galinha com outro colega, e o menino de raiva, fez a coisa, quero dizer, cortou os pulsos, mas não morreu.
Zulnara não tinha apreendido nada daquela história. Continuava distante, pensava na beleza de São Domingos Sávio e lhe recordava o ensinamento básico: “antes morrer do que pecar”.
— Não é trágico, Madame? — perguntou Tancredo.
— O quê?
— A historinha que contei, a do filho de minha prima...
— Sim — disse Zulnara — penso que sim. Morreu?
— Não Madame. Eu disse, quase morreu.
Zulnara virou-se para Albano, olhou-o queixosa. Disse:
— Nós não temos, meu bem, nenhum retrato de São Domingos Sávio...
— Eu mando — disse Tancredo. Na Bahia tem uns lindos. Eu mando. Terei prazer em procurar os melhores e mandá-los, a senhora não perde por esperar. Mas o melhor é aquilo que eu já disse: vamos todos para a Bahia e a senhora não pense, Madame, que eu faço o convite só de impulso, só porque, hoje, estou meio alegre. Não, Madame, eu já venho morando neste assunto há muitos meses. Só faltava a oportunidade de estar em São Paulo e fazer o convite, como agora faço e reafirmo. Para mim é questão fechada. Porque seu marido é o meu amigão do peito. Nascemos na mesma rua, chutamos a mesma bola, xingamentos de Albano eram xingamentos meus, estivemos na mesma igreja, no mesmo colégio e — se a Senhora permite a franqueza — estivemos a nos desvirginar no mesmo “castelo”...
— Tancredo! — Albano quase gritou.
— ... no “castelo”, Madame — Tancredo viu que não podia mais parar — no “castelo” de umas pobres raparigas, no Açouguinho... A senhora se assusta? Bobagem, Madame. Será que a senhora pensa que seu marido casou donzelo? Ou imaginava?
Albano suava frio e a pergunta saiu maquinal:
— Outro uísque, Tancredo?
— Não, não quero beber mais. Compreendeu ter ido longe na narrativa crua de suas reminiscências mas o desembestamento verbal era, agora, incontido, apesar do modo seco e do olhar gélido de Zulnara, seus lábios apertados, como se estivesse quase a chorar, e, ainda, o nervosismo de Albano.
— Não desejei escandalizá-la, Madame — disse. É que quando estou entre amigos e começo a falar, as verdades vão saindo sem cuidado, porque aos amigos não se engana. Espero que a senhora me compreenda....
Zulnara respirou fundo, olhou Albano, compreendeu-lhe a inquietação. Ele não apoiava aquela imoralidade, aquelas memórias do pecado, e quis ajudá-lo. Disse a Tancredo:
— O senhor é amigo do meu marido...
— De infância. Madame, de infância
— ... e minha obrigação é considerá-lo bem-vindo em meu lar. O senhor, esteja à vontade. Se desejar mais um uísque é só pedir.
— Não, Madame. Agora não. Mas tenho certeza que com o tempo a Senhora me compreenderá. Com os outros, Madame, eu sou seco, duro, áspero, meço as palavras, planejo meus gestos. E sempre, Madame, em torno de mim estão “outros”, dentro de mim está aquele fedor de miséria dos pobres. Não é que eu tenha nascido assim, Madame, e Albano sabe disso. Nosso dinheiro era um só, uma só era nossa alegria, a senhora fique sabendo, e nossa tristeza, Madame, porque ainda criança tínhamos tristeza, era também dividida. A senhora é devota de São Domingos Sávio, ótimo, Madame, e eu sabia de cor os seus quatros Mandamentos, mas a vida me forçou a esquecê-los, Madame, e eu desembestei. Seu marido suportou tudo, mas eu não pude... Madame, eu não pude... Aquele fedor de miséria me entrou pelo corpo todo e um dia eu bolei: ou saio desse atoleiro ou morro nele, apodrecido também. Pisavam em mim e eu resolvi, de estalo, pisar nos outros, para subir, Madame, e subi. Albano, irmão, eu aceito outro uísque... Com licença Madame — pediu.
— À vontade — ele respondeu e de novo havia calor nas palavras.
Tancredo começou a andar pelo living. Tinha-se, da janela do canto, uma ampla visão da cidade com sua fisionomia noturna.
— Por favor, Madame, chegue aqui — solicitou. Espie a cidade. É uma selva, Madame. Li isto num livro e foi há poucos meses. Uma selva com suas leis e seus animais, Madame. Para sobreviver é preciso ser um caçador impiedoso, um bom caçador, o olho sempre na mira, o dedo no gatilho pronto para disparar no momento exato.
Havia medo nos olhos de Zulnara. Diziam-lhe, naquele momento, o que ela nunca antes ouvira, no lar ou no colégio, e, mais tarde, quando se enamorara de Albano. O medo era, a um só tempo, da cidade, de Tancredo, e, um pouco, do passado.
Tancredo recebeu o uísque, agitou-se por hábito, bebendo de duas goladas sucessivas. Disse logo depois:
— No começo, Madame, e seu marido ainda não sabe disso, meti-me a vender livros, desses bonitos, caros, lindas coleções de livros, e me cutucou uma idéia. Sente-se Madame, por favor. Pensei comigo: essa coleção só as compram aqueles que gostam de livros aos metros e essa gente mora no interior, são os coronéis. Qual o erro das editoras, das livrarias? Simples: esperavam os fregueses ao invés de ir buscá-los onde estivessem. E fui. Viajei dezenas de municípios, sedes, distritos, aldeias, o inferno e quando voltei trazia um mundão de encomendas. Comecei assim. Fui crescendo, vendendo outras coisas, ações, papelórios, terrenos, casas, o diabo. Logo no início encontrei dificuldades. Os compradores queriam pechinchas e um deles, certo dia, perguntou-me na tampa:
— “Passa rio na porta?”
— Rio?
— “Sim, eu queria uma casinha de campo mas em terreno onde passe rio”.
Ora Madame, naqueles terrenos não havia rio, nem riacho, nada. Era terra bruta, seca, árvores chupadas e mais nada. De modo que voltei de mãos abanando para o escritório. O sub-gerente, que já morreu, que Deus o tenha, não me desanimou. Disse:
— “Tancredo, você é uma besta. Porque terreno em que passe rio na porta só quem providencia é Nosso Senhor Jesus Cristo. Logo Tancredo, você é uma besta”.
Eu me espinhei, Madame, mas não lamentei coisíssima nenhuma. De novo fui ver o cliente na base da ofensiva. Disse a ele:
— Então o senhor quer um terreno baratinho em que haja rio na porta da casa que o senhor vai construir, não é isso?”
O homem abriu os olhos, Albano, disse que sim, porque seu sonho era aquele: uma casinha barata, em terreno barato, com rio passando perto, de tal jeito que ele pudesse plantar suas betúnias, e então eu disse a ele:
— Pois descobri, cavalheiro, um lote assim. É este aqui, espie.
Ele espiou e quis saber:
— Cadê o rio?.
— Está aqui — disse eu — É pequeno mas é rio e o senhor não o vê porque a nossa Loteadora só vende terreno com rio na porta aos fregueses que merecem especial consideração, como é o seu caso.
— O homem comprou, Albano, comprou Madame, eu ganhei minha comissão, ninguém reclamou nada, até porque o sujeito estava mesmo era a querer ser enganado e não fiz mais do que atender à vontade daquele distinto suplicante. A senhora ri? Bom, ria à vontade, Madame, mas a vida é assim mesmo. Mas isso não é nada. O importante, o definitivo, é que assim desembestado eu fui crescendo. Com os tempos eu reuni um capitalzinho de quitanda e matutei comigo: eu tenho um capital de quitanda mas se for negociar nesta base terei sempre de vender uns nabos, uns maxixes, uns jilós e isto não me interessa. E decidi, naquele instante, partir com meu capital de quitanda como se fosse capital de Sociedade Anônima, quer dizer, violentamente, com todos os riscos. Eu estava desembestado, Madame. Em torno de mim só havia “os outros”, os inimigos, as vítimas. Zarpei para minha própria empresa, meu próprio negócio, e comecei de baixo, mas rápido, muito rápido, pisando ao invés de ser pisado, escapando dos inimigos maiores, que ainda não podia enfrentar. Bom, já falei demais. O resultado é que, hoje, estou rico. Tenho várias empresas, Madame, várias... Posso pagar o triplo a Albano. Ou mais do que o tripulo. Então, vamos todos para a Bahia. É minha proposta, irmão.
— Um dia, Tancredo... — Albano começou a dizer. Zulnara pensava. Havia tentação naquele homem e naquela proposta. Pensava...
— Nada de um dia a mais, um dia a menos — disse Tancredo. Vamos logo amanhã. Vocês são só um casal, sem filhos... Vamos amanhã, só para vocês espiarem o ambiente. Eu preciso de Albano, Madame, preciso de um irmão... Se não gostarem trago-os de volta. Iremos os três de carro, pela estrada nova. Será uma viagem inesquecível e no caminho irei mostrando os que são bestas e os que não são bestas — e estes, Madame, graças a Deus ou por culpa de Deus, não sei, não quero saber, estes são poucos. É fácil identificá-los, Madame. Cria-se um estado de espírito... Madame quer ver? Bom, ponho-me aqui, ao lado de seu excelentíssimo marido e peço à Senhora: Olhe-nos! E então, Madame, percebeu?
— O senhor pisca mais...
— Não é isso, Madame. Piscar mais, no caso, é consequência. O essencial, Madame, é a chama, a Senhora repare, é a chama do caçador bem sucedido, Madame!
Zulnara riu, já não temia Albano, seu passado, Tancredo, sua tentação, e o mundo em volta.
— Na verdade — disse — os olhos de Albano são calmos, os do senhor, ao contrário...
— É a chama, Madame, é a chama. Quem primeiro... Albano, irmão, me arranje outro uísque... Eu dizia, Madame, quem primeiro me descobriu essa chama nos olhos foi Mamãe Batista, um dia, há anos, conto a Senhora como aconteceu. Mamãe morava num velho casarão, um sobrado de vigas podres, a telha-vã, única herança de meu pai, que além daquilo só deixou mesmo muitos livros; mamãe morava ali, eu dizia, e certa vez falei com ela assim: “Mamãe, arrume seus panos de bunda”... não, não disse assim, essa expressão eu aprendi recentemente... Eu disse “Mamãe arrume seus petelecos, essa velharia toda, que amanhã a senhora sai desse chiqueiro e vai morar num apartamento meu, novo, um belo apartamento, Mamãe Batista”. É assim que eu chamo ela, Mamãe Batista, então, Madame, ela disse: “não vou não, Tancredo. Não vou morar em apartamento nenhum. Não moro em casa que não tenha lá dentro”. É verdade, falando sinceramente, os apartamentos não tem lá dentro. Só os dos ricos. Por exemplo: só o meu, que sou solteiro, tenho lá cinco quartos, os quais às vezes encho de mulher, mas mulheres gordas, Albano, mulheres de muita carne onde eu possa me afundar... Isso é detalhe. Mamãe disse aquilo e a coisa me doeu porque ainda não podia atendê-la. Estava desembestado já, mas não me achava rico ainda. Parei um pouco, pensei, repensei, e Mamãe, me olhando, se assustou. Me disse: “seus olhos, Tancredo, estão vermelhos. Parece que vão pegar fogo”. Exatamente, Madame, exatamente. Porque naquele preciso instante, eu bolava uma jogada, um golpe, e disse: “Mamãe Batista, a senhora não perde por esperar um pouco. Eu vou lhe dar uma casa que tem lá dentro”. Ela teve confiança, acreditou, porque me espiou nos olhos, viu a chama...
Albano pediu:
— Sente-se um pouco, descanse.
— Você não decide? — ele perguntou.
Zulnara reparou no esposo, que não perdera a tranquilidade senão quando Tancredo se excedera em certas reminiscências, esperando sua palavra final, e sentia que a tentação nela ainda persistia. Um vago desejo de aventura, algo que a inquietava.
— Um dia, talvez, Tancredo, eu e Zulnara iremos à Bahia... — disse Albano.
— Vou-me embora — disse Tancredo. Creio que falei demais e me sinto meio zonzo. Tanto uísque...
Agora estava cansado. Pediu:
— Faça de conta que não estive aqui, não disse tantas besteiras — e adeus, minha senhora.
Zulnara apertou-lhe as mãos olhando-o com alguma amizade. Albano levou-o à porta, abraçou-o. Sumiu. Desde então, e religiosamente, todo dia 21 de junho, o casal Albano-Zulnara Azevedo Maia recebe de algum lugar do Brasil, quase sempre de Salvador, uma reprodução, em 18 x 24, do delicado retratinho de São Domingos Sávio e as finas molduras são de puro ouro. O ofertante, naturalmente, é o próspero milionário Sr. Tancredo Batista e ele não sabe que, na realidade, o Padroeiro do dia, aquele dia, é São Luís de Gonzaga que morreu de lepra, em Roma, no ano de 1591, madurinho para tornar-se Santo. Albano, que é apenas um funcionário de salário razoável, vende o ouro da moldura e guarda a gravura, com o que concorda sua esposa, D. Zulnara, piedosa e convicta irmã de Maria.
( Dezembro, 1963)”
— Ah, pai! Se eu fosse essa Zulnara... Pegava Albano pela orelha e torcia até ele aceitar... Zulnara é uma babaca...
— Não é bem assim, Filha. Você vive no tempo do niilismo e de um pragmatismo exacerbado com relação ao dinheiro. Dinheiro tem importância sim, mas a ideia de supervalorizá-lo é uma ideia burra. Nem tudo deve ser visto unicamente do ponto de vista monetário e não devemos, por dinheiro algum, vendermos nossa dignidade. No caso da Zulnara, que era uma mulher oriunda de uma família da pequena burguesia, uma “cocotte” daquela época, que não tinha nem a liberdade de ser, era esperado submissão ao marido... Mas, mudando de assunto, você notou com que sutileza seu avô momentizou uma crítica social?
— Pai. O que é cocotte?
— É o que vocês chamam de “Patricinhas” hoje em dia.
— Ah! Tá! Mas eu não vi nenhuma crítica social...
— Como não? É vezeiro romantizarem a miséria como algo belo, aceitável, até cristão. Como você fez em seu texto a pedido da sua professora. Você sabe que até hoje os índios são vítimas de grileiros, garimpeiros etc. Até aqui, no sul da Bahia, local que você situou seus personagens, os nativos têm que lutar dia a dia para manter suas terras. Mesmo as já demarcadas. Mata-se, ainda, muitos índios na luta pelas terras.
— Não entendi, pai. Como se romantiza a miséria?
— Digamos que eu pinte um quadro retratando o entardecer da favela do Alagados, com crianças brincando felizes em meio às palafitas, cercada de urubus, tudo em belos matizes. Ou em poesias musicadas como... — Zé Ricardo canta: — ...“Amélia não tinha a menor vaidade / Amélia que era mulher de verdade”, — Víviam canta junto, — “as vezes passava fome a meu lado / e achava bonito não ter o que comer / e quando me via contrariado”... — A jovem para de cantar e Zé Ricardo também se cala. Depois pergunta: — Entendeu, filha?
— Saquei, pai. Passar fome não é nada bonito... O romantismo é o assunto que eu estou estudando. Só não sabia que era usado com este intento de luta de classe. De domínio do homem pelo homem. Vou levantar o tema na próxima aula...
— Aí, entra seu avô com “aquela miséria fedorenta”. Sacou? Sutil como um elefante. Nos textos de Ari há sempre uma motivação de luta política pelo igualitarismo sensato... Seu avô era humanista, foi até editor de um jornal comunista, “O Momento”... Nesse mesmo ‘programa’ Ari comenta a personagem Tancredo Batista... Procure aí o texto... Víviam folheia o livreto até encontrá-lo.
— Tem um artigo aqui com a foto de meu avô. O título é: “A má consciência e o diabinho”.
— É este...— Disse-lhe o pai.
— Eu vou levar este ‘programa’ para a escola. Posso?
— Pode. Leia.
Víviam lê:
“O que os franceses chamam de má consciência é, digamos assim, uma enfermidade do personagem Tancredo Batista, de ‘A Escolha ou O Desembestado’. Ele despreza os que obedecem e assim, em certa medida, a ‘má consciência’ é em Tancredo algo mais que o poderoso sentimento de culpa: o remorso não lhe é suficiente. Uma espécie de sadomasoquismo? Essa é, também uma das componentes da enfermidade, mas ainda assim — batendo nos outros, autoflagelando-se — Tancredo Batista não pode ser aprisionado a partir dos esquemas que Sade e Masoch inspiraram: os próprios, aliás, basta saber um pouco sobre eles, foram capazes de alguns bons sentimentos. A doença do personagem de ‘A Escolha’ é antes de tudo um momento de violenta perplexidade política: ele agride os que não sabem lutar pelos seus direitos e se comprazem com ‘a miséria fedorenta que é a miséria dos pobres’. Homens assim existem e alguns frequentam as páginas da História dos povos. Tratam-se de pessoas que, de repente, por força de um passado já apaixonadamente vivido, podem chegar à loucura do anarquismo (Kroptkin não foi o Príncipe?) ou a outro tipo de aberração política como é o fascismo. Ou podem, ainda, permanecer como um pêndulo a oscilar loucamente, julgando que as horas reais dependem de seus movimentos. Homens assim, ou porções desses homens, existem em cada um de nós... e nos santos. De algum modo, com sua estranha má consciência, Tancredo Batista é um pequeno santo que um dia precisou de mãos e vozes amigas e as foi buscar em São Paulo. Se não as encontrou — o amigo Albano, afinal, é um idólatra da pura sensualidade física, e Zulnara termina por ceder facilmente a tentação primárias —, se em São Paulo descobriu pessoas apenas pequeninas, não lhe cabe toda a culpa. Em famoso sermão do Padre Antônio Vieira diz que há os diabos mudos, terrivelmente perigosos, agindo sorrateiramente, e os diabos que falam, não tão perigosos assim. Tancredo Batista, é um diabo que fala...”.
— Não entendi, pai. Zulnara vacilou, mas não cedeu...
— Ari, nesse artigo, referia-se a peça encenada “A Escolha”. Como já lhe disse, de adaptação dele mesmo do conto para a dramaturgia. Na peça Zulnara cedeu... Mas são linguagens diferentes. Eu era garoto quando a peça foi encenada. Eu não assisti à peça, mas li a pouco o texto que deu origem a encenação.
— Outra coisa, pai. Por que má consciência? Por ser capitalista? Não entendi direito.
— Não necessariamente por ser capitalista, mas por ser vigarista, dai o sentimento de culpa. Tancredo queria do amigo Albano corroboração por agir dentro do sistema apodrecido do capitalismo selvagem, inescrupuloso, da usura e do cinismo.
— Ah!, entendi. O que seu Anjo discursou. Tancredo Batista era um clautro-morto-vivo.
— Quando escrevi O Anjo busquei uma correlação bem mais ampla. Tinha em mente “O discurso de Satã, de Friedrich Maximilian Klinger... Tem outro conto que escrevi que, por analogia, tem algo a ver com as personalidades de Albano, Zulnara e Tancredo. Mas não foi em nada proposital, entretanto, agora, relembrando o conto de Ari, noto semelhanças... Quer vê-lo?
— Quero. Zé Ricardo mexeu novamente na caixa e achou o texto manuscrito em papel pautado. Desmacerando as folhas entregou-o a filha:
— Consegue lê-lo.
— Acho que sim...
“ O machista.
Findando um tedioso dia de trabalho, Rubens, ao checar seu e-mail, encontrou convite para um happy-hour no bar que costumeiramente frequentava. De imediato confirmou presença, desligou o micro e foi ao bar tentando imaginar o que o amigo de infância e cunhado desejava. Ao chegar, por se sentir um frequentador prestigiado no bar escolhido, solicitou:
— Boa noite, Joel. Tudo bem, Dona Helena? A senhora pode pedir a ‘Jacaré’ para me servir na mesa de sempre? Dona Helena, prestativa, respondeu e perguntou,
— Claro! Quer que mande servir o carneiro?
—Mais tarde. Estou aguardando um amigo. Por enquanto, só quero uma dose do ‘Velho Oito’ . Peça a Jacaré que a leve pura, no estilo cow-boy.
Rubens caminhou em direção a mesa ao fundo do bar, junto ao sanitário feminino, como fazia costumeiramente nas noites de sexta-feira após concluir o dia de trabalho. Em poucos minutos, com a dose servida, ele observa a chegada de Pedro Ivo. Notou pelo terno que o amigo também viera direto do escritório. Ao entra no bar, Joel, dono do estabelecimento, apontou a Pedro Ivo a mesa onde Rubens se encontrava. Pedro Ivo foi em direção à mesa andando com os braços abertos e falando alto:
— Então... seu sacana! Nem me esperou.
— Acabei de chegar. — Respondeu Rubens, levantando-se.
Rubens estava ansioso para saber o motivo do convite e antes mesmo que Pedro Ivo se acomodasse foi inquirindo:
— Me diga! O que de tão importante fez você se lembrar de mim? Faz anos que você desapareceu...
— Calma! Você está bebendo o quê? — Enquanto Pedro Ivo se sentava, Rubens, bebendo o uísque de um só gole, também se sentou e após responder, perguntou:
— Uísque... Vai beber o quê?
Sem dar a resposta, Pedro Ivo se voltou em direção ao garçom e a ele pediu:
— Traga-me uma garrafa de Teacher... cabaço! E me traga também balde com gelo com copos compatíveis.
Voltando-se para Rubens ele disse:
— É aconchegante o barzinho, você já o conhecia?
— Sim. Ficava próximo a minha casa, mudou-se a pouco para cá. Sou freguês...
— Então é aqui seu campo de caça?
— É... e esta mesa é estratégica.
— Como é mesmo o nome?
— Bar’Tal. Mas não foi por isso que você me convidou. Abre logo o jogo. Tem algo de misterioso neste seu convite.
O garçom, equilibrando a bandeja, ofereceu o cardápio e serviu o uísque fazendo que os amigos se calassem. Rubens quebrou o silêncio ao se dirigir ao garçom.
— Jacaré, deixe para servir os tira-gostos mais tarde.
Rubens devolveu o cardápio e pediu:
— Traga-me uma jarra com água de coco.
O garçom retirou-se e eles retomaram o assunto:
— Diga-me, Pedro Ivo, entrou nalguma fria?
— Rubens... — Pedro Ivo corou, sentiu-se constrangido, mas respondeu — É meio chato o que vou dizer... Sei que você gosta muito de sua irmã, mas resolvi me separar e não quero perder nossa velha amizade... Eu não estou aguentando mais... são brigas diárias. Por qualquer motivo nós brigamos. Mesmo por motivos banais nós quebramos-o-pau. Sexo!? Sua irmã não quer nem pensar! Acredito termos chegado a extremos. Você que já se separou por três ou quatro vezes, numa boa, pode me dar umas dicas.
— Ufa!Estou aliviado. — disse Rubens de brincadeira e tentando quebrar a dramatização do amigo — Pensei que você fosse me pedir dinheiro... é que não estou em boa fase. O governo neoliberal desses idiotas me ferraram... Sim! Voltando ao assunto, eu não quero minimizar o seu problema. Toda separação é dificílima, envolve meandros emocionais, dinheiro, os filhos, é uma merda... No meu caso foram apenas duas separações e ambas complicadíssimas. Tão complexas que me mantenho solteiro. Relacionamentos só de carteira assinada e sem crias.
— Essa é nova. Como funciona isso?
— É fácil. Primeiro eu fiz vasectomia para evitar o golpe da barriga. Segundo, o Brasil é um puteiro a céu aberto, então contrato a namorada como secretária, telefonista, empregada doméstica. Qualquer coisa a depender do nível social dela. Pago o salário em dia e cumpro todos os direitos que obriga a C.L.T. Se melar, pago os 40% da multa, libero o F.G.T.S e demito, mando embora. E para evitar um processo de assédio sexual só contrato depois de já ter comido.
— Você é um escroto, Rubens. Continua não tendo o mínimo de escrúpulos quando se trata de mulheres.
— Gato escaldado tem medo de água fria... Errar uma vez é acaso; duas, é falta de sorte; três: já é burrice...
— Mudando de assunto... — Rubens se virou na direção do garçom e apressou ao pedido. — Jacaré!, Réptil de bosta! Traga logo a água de coco. — Então voltou-se novamente para Pedro Ivo e perguntou, retoricamente:
— Que tipo de mulher você espera encontrar hoje, meu querido cunhado. Quer outra Sandra? — e ele mesmo se respondeu. — Desista, não existem mais mulheres criadas como foi criada minha irmã!
Pedro Ivo, discordando do cunhado, afirmou com um ar de empáfia:
— Que nada, amigo. O mundo está cheio de mulheres honestas e ávidas por amor e carinho. Você deve estar desiludido, Rubens. Só isso.
— Não é bem assim, — explicou Rubens de forma cínica,
— Até posso acreditar que existam tais mulheres honestas e desejosas de um relacionamento estável. Porém, dentro das condições impostas por elas. Desde que os homens se sujeitem a ser tudo aquilo que elas odeiam nos próprios homens.
Levando a sério às reflexões de Rubens, Pedro Ivo se sentiu confuso e questionou-o:
— Não entendi o paradoxo... Você pirou?
— Talvez! Ou talvez seja por isso que você esteja querendo se separar. Talvez você tenha desaprendido, como muitos hoje desaprenderam, de como ser homem?
— Assim você está me ofendendo...
Pedro Ivo entornou a dose de uísque e falou como se fosse levantar para ir embora, mas Rubens o segurou colocando a mão sobre o ombro dele, e pediu:
— Deixe-me concluir, amigo. Não sugeri, apesar de ser moda, que você seja gay ou coisa parecida. Quero dizer que os homens de agora de tanto ouvirem e lerem sobre conjeturas psicológicas, de tanto atentarem para as teorias dessas feministas de “Facebook”... Nós, e eu me incluo nisso, com parcialidade, perdemos os princípios básicos que nos diferenciam das mulheres. — Rubens completa enfático — Perdemos a razão e a autoridade, repito. Autoridade... O poder! Um barco naufraga com dois mestres. Esse poder de igualdade cedido pelos homens às mulheres acabou por naufragar os relacionamentos estáveis e harmônicos das famílias. Não mude de mulher, mude de atitude. Tenha certeza que as fêmeas falam uma coisa, mas gostam indubitavelmente de outras. Quando elas alegam que esperam encontrar um homem sensível, dadivoso, sincero e fiel. Estão, na verdade, descrevendo o próprio corno conformado. E é o que elas odeiam. Aprendi isso às duras penas e não nego. Quando quis ser moderno, terminei por meter os pés pelas mãos. Hoje em dia, depois que reaprendi como tratá-las, não tenho tido mais problemas. Até as minhas ex-mulheres querem reatar comigo. Digo e afirmo com convicção: a maioria das mulheres gostam de homens que exercem poder sobre elas. Mesmo que Sandrinha brigue, xingue, que faça muxoxo, não ceda. Imponha sua vontade. As mulheres fazem seus discursos, contudo, amam mesmo a nós: os “porcos chauvinistas”. Não perca seu tempo tentando compreendê-las, elas são incoerentes, ilógicas e sadomasoquistas. Se uma mulher lhe disser que adora mimo não acredite. Quando uma mulher encontra um homem que a mime, otário é o adjetivo mais meigo por ela empregado para descrevê-lo entre as amigas. Por isso, amigo, se for dar presentes só o faça em ocasiões especialíssimas. As mulheres são tão loucas que se você der um mimo a elas sem razões específicas, elas imaginam logo que você fez algo de errado e se vingam sem pensar duas vezes... E nunca, nunca, meu amigo, seja sincero...
— Você está louco!, Rubens. Quem vai acreditar em uma barbaridade dessa?
— Acredite, cunhado! É a mais pura verdade. Lembro-me de um caso que aconteceu comigo. Eu tinha marcado de passar a virada do ano em um hotel com a namorada. Já transávamos há um tempão... Coisa de meses... ela levou dois dias se aprontando. Comprou um vestido branco cheio de anáguas e babados, disse-me caríssimo. Fez cabelo, maquilou-se e coisa e tal... Na hora que parei o carro em frente à casa da distinta. Ela veio lentamente descendo às escadas passo a passo como que imitando uma atriz de Hollywood. Ai, com aquele ar de pavoa, me perguntou exigindo sinceridade: “— Como estou, amor? Mas seja sincero...” — Ingenuamente eu respondi com toda a sinceridade exigida e disse: “— Está ridícula! Parece uma baiana de acarajé fantasiada de macumbeira...” Ela voltou para casa e eu nunca mais a vi. Perdi uma excelente trepada. Por isso amigo, eu digo e repito: seja o mesmo homem que fez Sandrinha se apaixonar... Que a fez escolhê-lo para pai dos filhos dela. Seja o Pedro Ivo do nosso tempo de faculdade... Não se lembra de como éramos? Nós fazíamos uma dupla infernal.
— Você se lembra, Rubéns? No “Copos & Copos bar...” Nós...
Ao relembrar fatos passados os olhos de Pedro Ivo brilham, mas ao tentar expô-los foi interrompido por Rubens:
— Não! Foi no “Travessia”! Onde aquela menina cantava. Como é que ela chama... eu... porra, esqueci!
— Eu lembro... era Daniela Mércury...
— Ela mesma. Você se recorda que eu ofereci um buquê de rosas a ela e ela, finíssima, após o Show, veio me agradecer pessoalmente. Pena que ela já era casada e não me deu a menor bola...
— Como era mesmo que fazíamos ao chegar ao bar? UAUU, UAUU! — Pedro Ivo imitou o uivar do lobo. Rubens o acompanhou no uivar para a lua. Pedro Ivo notou que eles estavam sendo observados pelos outros frequentadores do bar e, reprimindo-se, tentou refrear Rubens.
— Era ótimo, Rubens. Mas está todo mundo nos olhando.
— Fodam-se! Vim caçar e esse é meu grito de guerra.
— Contenha-se, Rubens. O dono do bar...
— Bobagem, Pedro Ivo. Olhe a lua, está linda, parece pratear a noite. Lembra-me até uma poesia de Ricardo Matos,
— Rubens levantou-se e declamou em alto e bom tom:
“Este luar que a lua reluz, / transmuta do ouro a prata e seduz ao desfilar seu brilho roubado./ Puro luar, que a lua se reflete cheia, linda, nua e se faz minha./ Oh! Primorosa lua!/ Vivo aluado por amar o teu luar...
Os frequentadores do bar o aplaudiram em salva, alguns de pé. Rubens fez referência, sentou-se, e aconselhou o amigo, Rubens completou:
— Deixe seus instintos masculinos suplantarem suas frustrações pós-cabresto feminista. Viva! A morte é certa! Pedro Ivo... — Jacaré! — Rubens gritou mais uma vez chamando o garçom que passava próximo. — Pode nos servir o carneiro agora. Mas por caridade, sem os acompanhamentos supérfluos. Traga-me também a água de coco que você esqueceu, seu mentecapto! — Já em um tom mais ameno, disse a Pedro Ivo:
— Você vai saborear o melhor rodízio de carneiro de toda a Bahia. Não! Minto! De todo o mundo!
— Espero. Estou faminto. — comentou Pedro Ivo e acrescentou — Peça com sua peculiar sutileza para que o distinto réptil nos sirva outra garrafa de uísque. Esta já secou.
Rubens se espantou. Não notara o quanto bebera e passou a se preocupar com o valor que seria cobrado na hora da conta.
— Porra!? Já acabamos a primeira!? Vou terminar a doze e peço um “velho oito”. Como você já sabe, eu não estou bom de grana pra esbanjar.
Pedro Ivo vendo que belas jovens se enfileiravam na porta do sanitário feminino quis impressioná-las falou para Rubens em inglês;
— The account is mine, you can even order a White Horse, IF you wish.
Rubens, que nada sabia da língua inglesa, confessou:
— Não entendi porra nenhuma, amigo. Traduza?
— A conta é minha, pode pedir até um “Cavalo Branco,” se desejar...
— Não! Ficamos no “Teacher”.
— Rubens solicitou ao garçom que rondava a mesa:
— Anfíbio! Não se esqueça da água de coco que até agora você não trouxe. E traga logo outra garrafa de “Teacher”... E traga rápido!
— Sim, Rubens. Bons e velhos tempos... pena que passaram. — Pedro Ivo foi acometido por uma dúvida singular e perguntou:
— Jacaré é anfíbio?
— Sei lá! Acho que é réptil... Isto não interessa...
Rubens não queria perder tempo pensando sobre o assunto do jacaré e continuava a verbalizar sua hipótese.
— O que importa é que o tempo só passa fisicamente. Não! Meu espírito é o mesmo, é exatamente o mesmo dos outros tempos. Você é que se aputou com a idade, deixou a chama se apagar... Voltemos ao tema principal... Quer dizer que você vai largar minha irmã, aquele monumento de mulher. Vai jogá-la as hienas...
— Não é bem assim, amigo. Eu ainda a amo. Amo demais meus filhos também. Contudo, tenho que admitir que minha vida virou um inferno...
Com a aproximação do garçom Pedro Ivo se cala. O garçom forra a mesa, põe sobre ela o outro litro de uísque, dois pratos, os talheres, a jarra com água de coco e um bilhete escrito num guardanapo de papel enviado por uma das jovens que os observava.
— Jacaré! — Rubens dirigiu-se ao garçom já alterado etilicamente e usando de cacofonia brincou:
— Vou-me já. Quando eu voltar, quero abrir com uma costelinha bem apetitosa e para meu amado amigo Pedro Ivo sirva o mesmo. Depois... Suma!
Rubens caminhou até o “palácio-de-Baco” se desviando das mesas lotadas. Estava imaginando algum argumento que convencesse o amigo e cunhado a desistir da decidida separação. Após aliviar a bexiga, levou mãos e rosto e, no retorno à mesa que ocupava, buscou identificar quem enviara o bilhete. Ao chegar à mesa, notou Pedro Ivo ruborizado. As suculentas costeletas de carneiro já haviam sido servidas.
— Rubens, querido amigo, tem caçadoras na área... Prostitutas?
— Falou Pedro Ivo a Rubens, com um lasco de carne entre os dentes e se mostrando desconcertado com o assédio.
— Ótimo, mas primeiro as costelinhas... Leia-me o bilhete.
— Em voz alta? — Retrucou Pedro Ivo.
— Claro!, — ironizou Rubens, — em voz baixa eu não conseguirei ouvi-lo. Leia logo essa merda.
— É de sacanagem... — Pedro Ivo ficou corado.
— Leia porra! Estou com as mãos ocupadas. — Exclamou Rubens já irritado com o constrangimento do cunhado.
— Ok! Lerei. Ainda acabrunhado, Pedro Ivo lê:
“Gatos, vocês estão de costas pra gente e não estamos usando calcinhas”.
— Pedro, é para você se virar e identificar as moças. — Rubens limpou as mãos num dos guardanapos, puxou a cadeira livre e a colocou na posição adequada para localizar as autoras do bilhete. Então ordenou:
— Senta aqui e me mostre que você continua sendo homem. Não vá decepcionar seu velho amigo.
— Estou sem ação...— respondeu Pedro Ivo.
— Esse é o seu problema, amigo. Sirva-me um uísque, eu vou até a mesa. Mas já aviso: se tiver uma omoplata, ela é sua. Rubens tentou se levantar, Pedro Ivo o segurou por alguns segundo e pediu:
— Senta! Vou mudar de lugar. Se valer à pena eu vou até lá. Mas que porra é omoplata? Traduza!
— Larga, chata e triangular.
Pedro Ivo sentou-se na cadeira previamente ajeitada. Observou duas jovens que aparentavam idade aproximada de 25 anos e concluiu,
— Duas gatas.
— De onde estou não dá pra ver direito. Bonitas? —Perguntou Rubens curioso.
— Também não esta dando pra ver direito daqui. Mas elas estão nos observando. Se eu for lá é separação garantida. Isso se Sandra não me capar primeiro.
— Vamos resolver primeiro a questão de Sandrinha. Aprenda com o mestre... Jacaré! — Rubens chamou o garçom — O garçom ocupado ao servir outras mesas se fingiu surdo e continuou o trabalho.
— Rubens... Vou ligar para Sandra e avisar que estou com você. Sei que ela te adora. Ai você confirma que eu estou com você.
— Porra nenhuma. Você vai resolver sua vida hoje. Faço questão de ver você e Sandrinha numa boa. À hora é esta. Não preste satisfação alguma a ela. O que você vai fazer é seguir minhas ordens ao pé da letra. Garanto-lhe que você viverá feliz com sua família. Se não, eu apresento o meu advogado.
— Olhe lá! Veja bem em que merda você vai me meter.
— Cabeça de gelo, cunhado. — Anfíbio duma figa! — Rubens Gritou já embolando a voz — Me ceda a senha do wi-fi? — E voltou suas atenções para Pedro Ivo.
— O que você vai fazer é pegar meu celular, ligar pra floricultura e mandar elaborar dois buquês de rosas. Um buquê com rosas cor-de-rosa traz prá cá, e outro arranjo, com rosas vermelhas é pra você mandar levar pra sua casa depois que sairmos do motel com essas duas. Veja aí no WhatsApp o número da Floricultura “Estrela Dalva”. Peça as flores e mande botar em minha conta. Leve o número do meu C.P.F e diga meu nome e o endereço para entrega as flores. Basta isso.
— Só isso?
— Não. Melhor... Mande escrever num cartão dizendo: “apaixonado por você”. Peça para entregarem as flores vermelhas em sua casa. Não é para assinar o cartão. Peça sigilo. Lembre-se: para sua casa as rosas vermelhas. E não assine o cartão.
— Você esta bêbado, Rubens. Você não disse pra não dar presentes sem motivo?... E, por que isso de não assinar o cartão?
— Bêbado talvez eu esteja e isto não muda nada. As flores é para Sandra saber que você aprontou mesmo... que está disposto a assumir seu trono de volta, porém que ela ainda pode fazer parte de sua vida. É um tipo de válvula de escape para ela poder retroceder sem se humilhar... Daí, se você chegar a sua casa encontrar o vaso com flores e ela estiver esperando por você cheia de amores. Você salvou seu casamento. Se você chegar e não tiver flores no vaso. Você é corno. De qualquer jeito você resolve sua vida. Separa-se de vez ou salva o casamento.
— E o buquê com as rosas cor-de-rosa?
— Manda trazer pra cá e ofereça a que sorrir primeiro pra você. A outra eu encaro. Estou necessitado de uma secretária nova. Agora vá. Se mande pra mesa das moças antes que apareça um prego.
— Traduza prego.
— Um besta que encosta, não come ninguém e fica até as mulheres irem embora, e pior, paga toda a conta... Outra coisa antes de ir... É importantíssimo! Só pode dar uma. Mesmo que ela implore, só pode dar uma. A outra você guarda pra Sandrinha... Vá logo...
- o -
Trim...Trim...
— Alô...
— As flores, cunhado! Elas estavam no vaso.”
Costa Azul junho de 2002
— Pai, você pirou? Seu conto não tem nada a ver com “O Desembestado”. São só bobagens machistas...
— Nada disso, filha. Dentro da realidade de hoje, num contexto de relacionamentos e guardada as devidas proporções, Sandrinha seria uma Zulnara, Pedro Ivo um Albano e Rubens um Tancredo Batista. Este conto é um manual de sobrevivência emocional, um tipo de “O Príncipe”, de Maquiavel. E ele tem em Rubens aquele diabinho falante que seu avô comentou.
— Deste eu não gostei não. Vou ler um dos de meu avô. Escolha um para mim.
Zé Ricardo folheia a coleção de contos “A Ostra Azul”, seleciona um deles, e pede para Víviam lê-lo. Explica ser o conto “As Estrelas não Morrem” o ponto de partida para a novela “As aventuras de Tônio Petrucci”, que fora reescrito quando o Pai fora condenado pela Justiça Militar e recolhido à Casa de Detenção. O romance seria publicado com o título definitivo: “Os dias do medo” anos depois.
“As Estrelas não morrem
1.
Morávamos na Pituba, o mar na porta, uma casa de remediados, a única de telha-vã das naquelas redondezas. As outras, disseminadas ao longo da praia, cobertas com palha de coqueiros, eram habitadas por pescadores. Tio Leonardo, íntimo de Deus, dos peixes, dos homens, quem sabe amigo até dos fanáticos cavalos-marinhos, e fervoroso amante das inquietas estrelas, tio Leonardo morava conosco: iluminava o quartinho do fundo.
Meu pai bebia. Cantava e bebia, italiano, filho da Calábria, exímio artesão do couro. Brasileira era minha mãe, fêmea bem dotada de ancas e peitos, lábios carnudos, amorenada. Nunca a vi sorrindo enquanto meu pai viveu. E de seus olhos, juro, nenhuma lágrima, o menor sinal de pesar, quando tio Leonardo resolveu morrer. Eu me recordo, ela disse que era idiotice aquilo que alguns pescadores estavam a fazer, arriscando-se na escuridão para encontrar a jangada na qual tio Leonardo saíra em busca do Oceano Norte.
— Morreu, morreu, acabou-se, pronto — ela disse, gestos de pessoa enfadada diante de tanto rebuliço. E embora soubesse meu pai triste, caminhando na praia, não o foi ver.
Mulher miserável. O suco dos tomates e dos sangrentos nacos de carne, suas unhas afiadas, duras, neles penetrando, esmagando-os, escorria entre os dedos crispados. E caía — aquele caldo temperado com ódio — caía, aos filetes ou aos pingos sobre o macarrão, de fios grossos, serpenteado no grande tacho de cobre. O jantar. Semanas e semanas após a morte de tio Leonardo, o mesmo macarrão, o mesmo molho. Uma noite, exasperado, ele gritou:
— Inhoque, burra, amanhã quero inhoque!
De novo papai cantava. O vinho era denso, amargo, de barril, vinho cor de sangue pisado. Eu gostava de bebê-lo, apenas um dedo, ou dois, na caneca de alumínio. A bebida amornava o metal frio. Mamãe meneava a cabeça, a dizer-me não, Tonho, não beba, e com os dedos da mão direita, cuidando que meu pai não lhe visse o gesto, configurava ameaça de beliscão. Eu bebia sem medo, papai gostando, a cara gorda, vermelha, dentes grandes, as mãos cabeludas, de muitos calos, ásperas, mãos curtidas, marcas de cicatrizes. Ele gostava de pô-las em meu rosto, comprimindo-me as faces, esforço de afago, a murmurar frases que eu não entendia.
Localizava-se no Taboão, bem distante da Pituba, a sua oficina. Acanhada, fria, escura, encravava-se em um dos sobradões de três a quatro andares, quase a aborda do despenhadeiro, lá embaixo, perto, a rua do Papel. Dali, como que privilegiado mirante, podíamos ver a Colina do Bonfim, no alto a Igreja solitária, e então ele fazia o sinal da cruz, olhando-me como se eu devesse repetir aqueles movimentos. Obedecia, imitava-o, mas preferia espiar à esquerda e reparar no porto improvisado, na ilha de Itaparica, adivinhando as rochas da Barra, e, além, no mar que se estendia, imenso, mar que tio Leonardo conhecera pedaço a pedaço, mar que para mim era o grande ventre do mundo. Uma intuição que conhecimentos posteriores mostraram ser verdadeira: a Bahia é uma cidade do mundo. Excluída a paisagem, basicamente ela nos chegou de fora, coisas e gentes se amalgamando, portugueses, negros da África, árabes, turcos. Papai tinha uma espécie de nojo dos ingleses.
Todos os dias, cedinho, ao sair para o trabalho, caminhava muitos quilômetros. Alcançando a encosta de Brotas, galgava-a e punha-se a esperar o bonde, puxado a burros, que o deixaria na Baixa dos Sapateiros, onde o Taboão começa. Nos feriados, de volta, ao meio-dia, fazia a pé toda a jornada, bebendo tragos de cachaça em quantas bodegas fosse encontrando. E cantava, sempre. Juntos fizemos, inúmeras vezes, aquele percurso, para outros demasiadamente longo e cansativo, para nós, o rei e seu filho, uma festa de inesquecíveis repetições. Cantava " Oh! Mari! / Oh! Mari!" e olhava-me e perguntava:
— Bela você, no?
Eu sorria, batendo a cabeça, a concordar, sim, pai, sim, bela voz, belíssima voz, e ele, bem mais feliz, voltava a cantar, avançando pelos descampados. Nos caminhos que fazíamos, não poucos o saudavam e ele acenava para todos, a alguns dizendo coisas, em geral a barba por fazer. Marchava rápido, intrépido, os borzeguins a ranger. Para acompanhá-lo era necessário que, de quando em quando, eu corresse.
— Aqui! Aqui! — gritava e eu, quase sem fôlego, a ele me reunia, tomando-lhe a mão lixenta, manopla de herói. Ah! figlio... — e me carregava. Concedia tempo suficiente para que minha respiração voltasse ao normal e prosseguíamos e sentíamos como nossos os prados e os enladeiramentos que se sucediam, terras e areais da cidade que muito lentamente se iam expandindo na direção da orla atlântica. Falava, sempre falava. Debicava de mim, a dizer-me um molengas, historiando que em sua terra calabresa, garoto e adolescente, ele e tio Leonardo divertiam-se a vasculhar cavernas de montanhas, mesmo as mais recônditas, assim estabelecendo intimidade com uma natureza que eu imaginava árida e violenta. Era com enlevo que lhe ouvia as descrições, garantindo-me — ou melhor, jurando — que quando crescesse seria tão forte quanto ele, livre, valoroso, alegre, em condições de repeti-lo em tudo. Dizia-me, cada momento com maior obstinação, que só não o imitaria na escolha da mulher, que a minha, ainda sem rosto, seria alta, branca, capaz de beber e de cantar, de sorrir e correr pelas praias, e distante iríamos, muito, muitíssimo distante, vencendo as ondas e os vagalhões. Iríamos até onde mar e céu se encontram, precisamente no local que tio Leonardo chamava "o grande útero oceânico, fonte do sol e de Deus, oficina para a invenção dos arco-íris".
Mulher diferente não me serviria. Muito menos se minimamente parecida com minha mãe.
Na loja, a trabalhar, habituara-se a murmurar frases ininteligíveis, acredito que ora imprecações, ora lamentos energéticos, sobretudo nas semanas imediatamente seguintes ao desaparecimento de tio Leonardo. Talvez ao irmão se referisse, talvez nele pensasse quando, a mirar a Igreja do Senhor do Bonfim, se persignava. Intrigante é que, não raro, ele sorria: não tinha medo... Era na loja, ao lado do nicho pobre de imagens, que meu pai guardava o retrato de tio Leonardo, preservando-o com férvido amor. A fotografia mostrava um rapaz de olhos claros, feições entre severas e alegres, parecendo rir e, no riso, um quê de espanto e outro de interrogação. Intrigantes suas feições. Criança, despreocupavam-me enredos deste jaez, mas um dia algo me fez perguntar porque tio Leonardo fora temerário a ponto de arriscar-se sozinho, a desejar tão longa distância, na oficina dos arco-íris, papai não me deixou concluir a frase — merda, Tônio, merda. — deixando de lado a pelica em que trabalhava, saindo de banda. Um dos ajudantes, chamava-se Lobo, impediu-me de segui-lo em direção ao despenhadeiro.
— Ele vai rezar, é só isto.
Então contei que tio Leonardo pedira emprestada a jangada velha do homem de dona Jerusa e, nela, sozinho, gritando ciao, Vincenzo, ciao Tônio!, largara-se na direção do Oceano Norte, e levava um garrafão de vinho tinto, pedaços de salame, broas, por que, seu Lobo, por que?
— Só seu pai sabe, mas não pergunte. Nunca pergunte.
Em outra ocasião, meses e meses depois da missa de ano pelo morto, rezada na Igreja do Rio Vermelho, missa paga pelos pescadores, era noitinha, ouvi da porta de casa, meu pai gritando com mamãe, e espiei:
— Leonardo foi parido, burra!
Ela se encolhia, junto à janela que dava para o quintal.
— Foi parido com sangue, fezes, urina, foi parido com amor. Você, cretina, você foi cagada. Você saiu pelo buraco de trás! Você foi expelida como um cocô qualquer.
E cuspiu-lhe na cara. Chorei e para que ele não desconfiasse do medo que sua violência me causara, fui à praia e molhei o rosto com água salgada e fria; se me perguntasse porque aquilo, um procedimento inusitado, eu mentiria: um afogamento no rosto, estava brincando de chicotinho-queimado. Nenhuma atenção para minha presença, saiu de casa, andando à toa, de um lado para o outro. Dormiria em seguida, era sempre assim, no pequeno quarto que fora de tio Leonardo. Ali ela não entrava. E, se o quisesse de volta, teria que caminhar até o Taboão, humilhando-se. Ignoro como ele reagia. Mas sempre retornava.
Em certas tardes, quando lhe dava na veneta, fechava a oficina mais cedo e, de cambulhada com mascates, meganhas, gentes outras que eu não identificava, descíamos a ladeira íngreme, quase sempre barrenta, que terminava em pequena praça, a poucos passos da rua Guindaste dos Padres, e então andávamos em direção ao mar da Baía de Todos os Santos e perto do porto permanecíamos a olhar os navios estrangeiros que chagavam para descarregar caixotes, além de volumes mais pesados, trilhos, sempre muitos trilhos (Ah!, os brutos assassinaram nossas ferrovias — e eram tantas!), em troca recebendo sacas e sacas de açúcar, fardos de fumo, toros e toros do precioso jacarandá hoje tão vasqueiro em nossa terra. Cacau? Não se falava ainda, que eu me lembre.
Se divisávamos algum navio de bandeira italiana, meu pai se excitava. E, todo contentamento, apressava-se em fretar uma catraia e partíamos para abordá-los e ele gritava para os marinheiros e em muitas oportunidades subíamos aos conveses cativando-os, e aos oficiais, com ofertas de quinquilharias compradas a dez réis às mulheres que, na Pituba e em Itapuã, trabalhavam no aproveitamento artesanal das cascas de coco seco. Conversavam, o máximo possível, ele e os tripulantes, enquanto eu, maravilhado, reparava nas armações de ferro — para mim construções de indispensável brutalidade — nas águas sujas de óleos e queimados pedaços de madeiras, nos cascos negros dos grandes barcos. Principalmente, eu reparava aqueles homens, em geral fortes, troncudos, que vinham de terras estranhas, heróicos artigos, generosos quando ofereciam garrafas de vinho, pedaços de queijo, salames. De volta à catraia — não havia ainda porto, os navios ficavam ao largo — quase sempre meu pai se mostrava triste. Numa ocasião dessas, vi, chorou mansamente e imaginei que um dos bravos marinheiros mencionara tio Leonardo, Percebi-lhe as poucas lágrimas. Ele tentou disfarçar, escondê-las, mas eu as vi, não o temesse beijaria seus olhos úmidos, e o amei mais do que nunca. Era rei e era homem, força e ternura combinadas.
Visitavam-no, quase todos os domingos, seus ajudantes mais aptos aos serviços e à amizade. E alguns patrícios italianos, igualmente artesões do couro. Com exceção do Sr. Giuseppe, indivíduo caladão, os convivas eram comunicativos, algazarreiros. Os da terra pitubana, inclusive dois ou três pescadores, reuniam-se na sala da frente: bebiam cachaça e jogavam dama. Ou contavam histórias. Os italianos, meu pai os agremiava no quintal, acomodando-os em tamboretes, área onde muitos coqueiros propiciavam sombras. Bebiam vinho e cantavam, e como bebiam e como cantavam!
Na cozinha, debruçada sobre o fogão à lenha, mamãe preparava a comida, panelaço de macarrão e frigideiras. Arisco que era, a querer gozar de tudo, eu me dividia entre a sala e o quintal, olhando minha mãe a trabalhar, entendendo como parte das normas que regiam a festa lhe escorressem lágrimas pela cara abaixo, simples consequência da fumaça a ofender os olhos. Culpa dela, e só. Mulher incompetente, não sabia escolher entre a boa e a má lenha.
Alto e solitário, o Sr. Giuseppe bancava-se na frente da casa, sob o sol, protegido, no entanto, por chapelão de palhas enfeitada com fitinhas verdes. Cruzadas as pernas finas, distraía-se a folhear revistas antigas, italianas e francesas, clichês em sépia, e quase todas traziam fotografias da Exposição de 1889, em Paris, a Torre Eiffel como atrativo principal. Por motivos que escapam, ainda hoje, à minha capacidade de inteligir as coisas, os demais, até papai, lhe tinham respeito. E minha mãe exagerava, com seguidas ofertas de água de coco. Era o primeiro a chegar, como se precisasse de pouso, era o último a sair. Não me lembro de, na Pituba, dele ter ouvido mais que o essencial. Em particular se as questões tratadas não se referiam a negócios. Nesse tópico, aconselhava se lhe pediam, e sumiticava palavras, gestos. Um inglês. Depois, com jeito a significar aborrecido "se me permite", voltava à posição antiga, esfingético. A mim, assevero, o filho-da-puta nunca enganou.
Concedendo-lhe privilégios, minha mãe levava-o à borda da praia, aos anúncios do cair da tarde, ausentes todos os demais convidados, enquanto meu pai, à sombra do nosso coqueiral privativo, dormia e suava sobre esteira sem forro. Uma vez na praia, caminhando, sempre inteiriçado, careca à mostra, um tanto de longe dava de testa e acenava tímidos adeuses. Ela respondia desenvolta, satanicamente bela, e quedava-se a vê-lo desaparecer entre as então alvas dunas. O Sr. Giuseppe não gostava das trilhas que conduziam a Brotas, possível medo diante do perigo das cobras escondidas nos densos matagais. Em verdade, falava-se de jibóias que esmigalhavam os ossos de bois e vacas, antes de devorá-los. Ele preferia o seguro: caminhar, mesmo que muito caminhasse, até a povoação do Rio Vermelho, ali pegando o bonde até a cidade.
Papai, quando despertava, por volta das cinco da tarde, ou pouco mais adiante, ia à praia dos "doze coqueirinhos", árvores anãs que, em noite sem lua, pareciam eriçados espantalhos. Se me atrevesse a acompanhá-lo, ordenava que o deixasse em paz, via, via, via! Queria-se solitário para recordar tio Leonardo ou quem sabe a imaginar-se de novo adolescente em sua terra calabresa ou a planejar novos deveres profissionais. Era todo o seu mundo: a memória, a oficina, a casa, os amigos, aqueles repetidos caminhos nunca tediosos, as apetitosas lavadeiras de Itapuã, eventuais encontros com marinheiros. Em tarde domingueira, uns dois anos após a morte de tio Leonardo, porque não o vi caminhar em direção à praia de usual refúgio para meditações, perguntei:
— E papai, cadê ele?
— Vá beber seu café, Tonho, senão esfria. Ele está com gostinho de chocolate...
— Cadê ele?
— Foi vomitar lá pelos matos. Foi vomitar a nojeira.
Mentia, maldosamente. Ele estaria escondido em meio às dunas ou caminhando entre coqueirais, a pensar e a rezar, dela e de mim encobrindo sua tristeza. Contentamento no seu modo de dizer a inverdade estúpida, o meu desejo foi o de chamá-la bruxa cagada, mentira porque um rei não vomita, e nada disse, temeroso, e alegrei-me, uma vez mais, ao ver suas unhas sujas de pó de carvão, lágrimas secas no rosto. Meu pai não a tratava a pão-de-ló.
2.
Um dia santificado, dia que odeio, não por acaso faltei à solenidade de minha formatura como laureado bacharel em Direito, no maldito dia (8 de dezembro, consagrado à adoção de Nossa Senhora da Conceição da Praia), ele morreu depois do almoço, unicamente minha mãe e a vizinha Jerusa a assistirem a agonia. Eu estava longe, corria picula com filhos de pescadores. Urrou como um porco. Como um porco a ser sangrado — minha mãe, fingindo-se em luto, contou assim ao Sr, Giuseppe, de noite, no velório. Puseram-no na sala, caixão grosseiro, lenço encardido atado do queixo à cabeça, para que não se abrisse a boca, desse modo permanecesse escondida língua, enodoada de vinho. Eram poucos os vizinhos presentes àquela cruel cerimônia, a mesa no centro da sala, o caixão sobre a mesa, cadeiras e tamboretes dispostos em semicírculo, todos os candeeiros de mechas acesas.
Até mais de onze horas, quiçá além de meia-noite, permaneci na porta, sentado no banco-de-três, e então, sim, eu pensava na morte como a pior das desgraças. Antes, a danada não existia para mim, porque no meu entendimento tio Leonardo encontrava-se apenas desaparecido, algo inexplicável, além do que conseguia inferir ou intuir, muito menos compreender. Ou uma incerteza. Meu pai, não, meu pai estava morto, perto de mim, morto, apodrecendo, morto. Vento, naquela noite, quase nenhum, tempo pesado e a maresia forte. Eu tentava apreender o significado da informação transmitida por minha mãe ao Sr. Giuseppe. Desconhecia o verbo urrar e nada sabia sobre o morrer de um porco. E esse não saber transformou o medo em pavor. Doidas fantasias defenderam-me de maiores danos.
Na sala, a madrugada chegando, restavam minha mãe e o Sr. Giuseppe, de costas para o caixão. Ela mandou que eu entrasse e maquinalmente obedeci, louca esperança envolvendo-me, e quando o Sr. Giuseppe pôs-se a fechar a porta, ouvi o não! da mulher, rouca a voz, ele não aldravasse a porta, por favor, que em noites de velório todas as portas e janelas deviam ser mantidas abertas e acesas todas as luzes da sala do morto. O Sr. Giuseppe concordou, no íntimo deve ter considerado infantil a superstição, e desejei, em crise de desvario, que chegasse logo a comissão de marinheiros italianos a exigir-lhe a entrega do corpo do rei, não lhes pertencia e sim à Congregação dos Sábios Alegres e Bons, presidida por tio Leonardo, majestade numa ilha sem nome, no Grande Oceano Norte, um paraíso, nós sabemos, Sr. e Sra. Giuseppe, nós estivemos lá, temos ordem de levar conosco o obediente menino Tônio, e ouvi — juro! o chamado de tio Leonardo, viene, Tônio, viene com noi! e corri para a praia e ela me perseguiu e alcançou e empurrou-me em direção à casa. Entre de uma vez — gritou, chorosa, soluçante, e esperei dele uma bofetada e não ouve bofetada. Eu o aturdira. Ela determinou caminhasse para o outro lado da sala, o lado do quintal. Evitei olhar o caixão, uns segundos, e quando olhei já não era o mesmo homem de horas atrás. Estava mais morto, o rubor da face desaparecera, a pele amarelecendo, e quando, de inopino, ganhando coragem, lhe quis abrir os olhos para ver se ao menos em um deles havia sinais de vida, Sr. Giuseppe empurrou-me para o canto, quase um safanão, se acostume, Tônio, não irrite sua mãe! e eu fiquei naquele canto, de pé, agora muito maior o medo, porque além da morte em meu pai, agora uma dor que certezas encorpavam, também eles agiam brutalmente contra mim.
Eu crescera, até aquele 8/12/1911, sem curiosidades e quanto me trouxesse tormentos, com eles não queria compaginar minha existência feliz. E ali estava e em dia santificado e naquela sala, em tudo, mesmo no silêncio, a presença do pior dos maléficos e a me impor, como real, concreto, o que para mim sempre fora uma impossibilidade permanente: o rei estava morto, ventre intumescido pelos gases do vinho fermentado e das carnes a se deteriorarem, os grossos lábios artificialmente colados, pálpebras descidas, cadáver. Besteira eu ter corrido para a praia, desesperação haver imaginado os marinheiros italianos, a voz de tio Leonardo, e sensatamente me disse: estes dois aqui, sim, estão vivos, Tônio, e podem matar outra vez, e vi minha mãe apatetada e vi o Sr. Giuseppe caminhar para o quarto de dormir e logo mais ouvi ruídos, os do seu corpo a mover-se na cama de ferro: ele invadia o mais íntimo dos domínios de papai.
E fui para o outro canto da sala, aquele onde existia acesso ao quarto em que dormia. Dali, eu mirava e remirava minha mãe a alternar três movimentos básicos: sentava-se num dos tamboretes, olhos no chão, pensando; levantava-se, ia até a porta, respirando fundo; e, finalmente, espiava o Sr. Giuseppe, decerto admirando aquele homem grande e magro, de queixada larga, muitos cabelos nos ouvidos e nas narinas, e, como depois eu viria a conferir, de ressonar compassado. Enquanto, na sala, estive desperto, nem uma vez ela olhou o corpo de meu pai. E porque comigo também não se preocupava, em mim o medo enfraqueceu, e, momentaneamente supondo-me em segurança, chorei sem soluço ou qualquer barulho. Eu chorava a maior de todas as ausências e querendo minha, somente minha, aquela dor, fui para o quarto. Dormi sem me dar contas. De manhã, quando acordei, minha mãe surgiu com determinação peremptória; eu deveria escovar os dentes — areá-los, como dizia — beber o mingau de café e sair logo para praia, brincar, regressasse justo na hora do almoço, nem antes, nem depois, e se acostumasse com os desígnios de Deus, Tônio, ou ele castiga você; só Deus sabe o que nos convém, e reprimi as perguntas que em mim cresciam — a você, bruxa, cagada, convém o Sr. Giuseppe; e eu? O que convém? — e para que ela não descobrisse meu atordoamento, eis que doía engolir indagações essenciais, marchei para o quintal. Na tina fiz as abluções e quando quis retornar à sala, o Sr. Giuseppe impediu-me e minha mãe, secundando-o, as mãos a me comprimir as espáduas, apontou a praia. Vi, então, no varal, pendurada ao sol exposta, a roupa preta que meu pai odiava. A única má herança trazida da Calábria, jamais a usara, sequer na missa-de-ano de tio Leonardo. E iam, agora que estava morto, indefeso, iam vesti-lo com os panos pretos, atassalhando-o, perversa vingança.
Na praia, decidi caminhar e caminhei, a imaginação robustecendo um medo sempre mais opressivo. Perto do trecho já conhecido como "Chega Nego", alguns meninos divertiam-se a chutar um xaréu que o mar ali depositara, peixe morto por doença, quiçá abatido pelas "cabeçadas" dos botos, e chamaram-me e continuei andando e vi homens em jangadas, mulheres nos seus afazeres de terra, e chorei de novo, como o da véspera um choro sem testemunhas.
De volta, notei, havia uma carroça na porta: o enterro e era pouco mais do meio-dia. Pelas conversas depreendi que antes do cemitério, Quintas dos Lázaros, um médico deveria vistoriar o corpo, capacitando-se para expedir o atestado de óbito, e o Sr. Giuseppe informou que isso já estava acertado com um doutor do Rio Vermelho, ele nada cobrava de seus eleitores e não era careiro com os demais. Concordando, o carroceiro sugeriu que era hora de partir, o sol estava endurecendo, um pescador disse "sol dos diabos nas costas da gente, mas bom para os peixes", o Sr. Giuseppe anuiu, "é isso mesmo", e observou que como os bondes-bagageiros não aceitavam cadáveres, coisas assim, tinham todos de ir andando até o cemitério, bem longe, e se você já está pronta, Sophia, eu vou pegar meu chapéu.
— Estou.
Usava o seu único "vestido de sair", espécie de bata creme que ia do pescoço ao chão, toda bordada, escondidos os braços roliços, bem torneados que papai, quando calmo, gostava de alisar. Ela avisou que meu prato de macarrão fora posto na mesa, eu comesse, faça tudo direitinho, Tonho, que dona Jerusa vai ficar cuidando de você. O carroceiro, um sujeito de maus-bofes, ora a apalpar o chapéu de couro cru, ora pondo-o na cabeça, olhava sem emoção o esquife de meu pai, atadas as cordas grossas, espinhentas, sujas de gordura e poeira: eles prendiam o caixão no reboque. Dele tinha medo, mesmo morto. Ou não exagerariam naquelas preocupações quanto a prendê-lo. O retorno do Sr. Giuseppe fez com que o carroceiro gritasse estridente eia, burro e chicoteou o animal, a seguir puxado na direção da trilha do gado, pouca gente no cortejo atrás da carroça. E se foram, que tinham pressa, e andei, na mão esquerda o prato trazido por dona Jerusa, andei em direção oposta, desinteressado por comida, e se sucederam as praias úmidas, o mar puro, azul, alvas espumas nas suas bordas, mais de uma hora caminhei, tempo não me faltava. Itapuã, então, o sol ainda a pino, era cedo para as lavadeiras dos córregos nas imediações do Farol, certo viriam mais tarde, logo amainasse a quentura, fossem mais propícias as sombras de coqueiros, de mangueira, de fruta-pão e outras frondosas: eram muitas as amendoeiras com seus frutos. O prato de comida deixado entre os coqueiros anãos e estéreis, a morder, para enganar a fome, amêndoas que me arroxeavam língua, lábios, partes do queixo, atribuí-me a obrigação de esperar as lavadeiras, nalgumas ele montara, e anunciar-lhe que o rei travara sua última batalha, aquela que ninguém vence. Nunca mais, por isso, beberiam do seu vinho, nunca mais o escutariam a cantar, nunca mais o teriam as fogosas. E deitei na grama, o vento que vinha do mar a acariciar-me as pernas, o peito, o rosto, e dormi. O sono adiava a definição do ódio.
Próxima à noite, regressei e eles não me agrediram, apesar de dona Jerusa haver xeretado sobre a comida abandonada, sobre a longa ausência. De tanto não entender — ela completou — o pobre emagriçou muito de ontem para hoje, dona Sophia, e mamãe disse coitadinho, os dois eram muito pegados, levando-me ao fundo do quintal, onde, após o banho-de-cuia, água morna, recebi macacão limpo, passado a ferro de engomar. Desempenhava para o principal espectador, Sr. Giuseppe o papel de boa mãe, acariciantes as mãos, os dedos agora livre do pó de carvão ou fiapos de carne-de-boi, um xale novo, marrom escuro, decerto comprado pelo intruso, caindo da cabeça até os ombros: juro que ela estava não direi feliz e sim descontraída, nos olhos, no rosto, sumida a tenção habitual.
Mastiguei pedaços de inhame e fui para fora, em busca do amado "banho-de-três", ali onde, com freqüência, papai e titio Leonardo me esperavam, antes, para agrados e histórias. A noite, e uma noite muito bonita, veio logo depois, de certo modo festiva. Em certa oportunidade meu pai gritou ao ver estrela riscando o céu:
— Veja, Tônio, ela está caindo!
Quando perguntei onde a estrela havia caído, em que mar, respondeu que ninguém sabia. E olhou-me — fui, então, mais do que seu filho — e disse que com certeza em um mar. Estripulias do bom Deus — disse tio Leonardo, explicando que Deus é alegre e tanto que joga petecas usando estrelas. Mas, advertiu, às vezes erra, que o supremo de Tudo e de Todos também erra, e aí as estrelas Lhe escapolem e caem. Elas se afogam, elas morrem? — e os dois riram de minha indagação. Supondo-a desnecessária, não me deram resposta. Eu, de mim, construí a certeza, efêmera, sei, mas de valor alegórico: as estrelas, porque são brinquedos de Deus, não se quebram, não se afogam, sempre permanecem. Mudam de lugar no céu, mas não morrem.
No dia do enterro, noite e o céu pelado de flores recortadas em pedaços de luz, indicando o caminho principal, ao surpreender mamãe e o Sr. Giuseppe em confidências, defini o ódio como um sentimento permanente, a serviço de purificadora vingança, e esforcei-me para que de uma maneira se imbuíssem, a de que eu me encontrava desarmado de intenções a eles prejudiciais, a de que seria obediente também a dona Jerusa, a de que nunca mais iria ver as lavadeiras de Itapuã, a de que..., a de que..., enorme peta com muitos braços. Olharam, porém, apenas de modo aprovativo, sem qualquer entusiasmo, e minha mãe indicou-me a mesa, hora da janta. falou para o Sr. Giuseppe:
— Jerusa disse que estão contando que a jibóia matou um velho que dormia na rede, em Itapuã.
— Também soube.
— Eu tenho medo de ficar sozinha com Tonho.
— Nem deve. Se sente, Tonho.
Onde, na véspera, fora colocado o caixão, encontravam-se, devidamente arrumados, os canecos, a travessa com bolachas-de-macaco, numa espécie de terrina as rodelas de inhame e de fruta-pão.
— Você devia trazer a pistola que você tem. Por causa da jibóia.
— Amanhã, E vou mandar afiar mais o facão.
— É bom, Giuseppe, é bom. Jerusa disse que a jibóia matou o velho e depois comeu o velho inteirinho.
— Também soube que foi assim.
Bebi um caneco de mingau, mastiguei umas quatro ou cinco bolachas, gostava, e ele perguntou só vai comer isto, menino? e repeti a dose. Esquecendo a jibóia, com ela não me impressionava, o Sr. Giuseppe, adotando outra tática, considerou natural a minha inapetência, atribuindo-a ao tão inesperadamente acontecido, e comi mais bolacha, mais fruta-pão, e perguntei:
— Posso levar mais bolacha pra comer lá fora, posso?
— Pode, mas não demore.
Enterrei as bolachas na areia e, estômago pesado, debalde tentei provocar o vômito, apressado para que não me vissem. Chamado, com insistência chamado, voltei à casa e o Sr. Giuseppe, explicando que ela ia dormir em meu quarto, sua mãe não prega olhos desde a noite passada, guiou-me até o canto para o qual, no velório, me empurrara. Ali fora armada minha cama provisória.
— Deixe eu dormir no quarto que foi de tio Leonardo.
O Sr. Giuseppe pareceu concordar, mas minha mãe interveio:
— Não. Lá, não. Por causa da jibóia.
Eu sabia ser mentirosa a presença da grande cobra em Itapuã. Verdade fosse, dela as lavadeiras me teriam falado; Emília, uma escurinha, a preferida de papai, haveria de me fazer mil recomendações.
A cama limitava-se a um colchão de palha sobre estrado obtido de caixões justapostos; um biombo de chita, predominância verde, que ele trouxera na viagem de vinda da carroça, garantia-me razoável privacidade. E, apressado, me encerrei no cárcere colorido, agudizando minha potência auditiva, ouvindo os murmúrios que vinham das imediações da porta principal, mamãe e ele em rápidos cochichos e demorados silêncios, agora esquecida a canalhice da jibóia, como se conchavassem os pormenores da noitada. O vento amigo, incorruptível, penetrava pelas frestas do telhado e das janelas, um zunido comum, do ontem e dos meus iniciais anos de preparação, criou apaziguadora ambiência, induzindo-me ao sono. E dormi e sonhei e sonhando ouvi a voz do rei, cheia, poderosa, alegre, na canção sobre os marinheiros capazes de conhecer todas as cidades do mundo, sem desamor àquelas de suas origens, sempre retornando. Se não me engano, "Ritornello", este o nome da canção, e minha mãe, no entanto, chamava-se Sophia, assim, com ph, e ignorava que as estrelas são brinquedos de Deus; petecas, com elas Deus se diverte e encanta o mundo, espalhando beleza e alegria; e como as coisas de Deus não morrem, as estrelas fingem o sumiço mas realmente não caem e sim mudam de lugar, no céu.
Fim”
— Gostei demais! Meu avô é dez... viu como é poético e emocionante os contos de meu avô? Tem algum dos seus contos que não seja assim... digamos, de esculhambação...
— Você não vai querer comparar os meus contos com os de meu pai, né? Sou amador...
— Eu sei, pai. Mas escolha um menos machista, certo?
— Tenho um bonzinho. Zé Ricardo busca outro conto de sua autoria e, entregando à jovem, diz leia:
“ Se desarmarmos os espíritos será
desnecessário desarmarmos os homens.”
R M
— Esta frase é sua, pai? Achei linda.
— Pelo que sei é. Não copiei de ninguém, mas muita gente escreveu muita coisa e talvez alguém já tenha escrito algo parecido ou igual. Sabe Deus... Leia o conto.
— Já vou ler:
“O louco.
1.
Trim... trim... trim...
— Alô?... Pai?
— Oi, filho. Tudo bem?
— Pai. Preciso vê-lo com urgência. Eu estou...
— Aconteceu algo de errado com meu neto?
— Não, pai. Está tudo bem com ele, o problema é comigo.
— Fale. Estou ouvindo.
— Não pode ser por telefone, pai. Amanhã vou até aí para conversarmos.
— Venha ás dez horas. A nova administradora é rígida e não permite visitas fora dos horários preestabelecidos. Quer adiantar o assunto?
— Não... Até amanhã, pai.
— Até amanhã, Almir.
Chinfrino repôs o fone no gancho. Ronivaldo, colega de quarto, andava de um lado para outro com os dedos na boca. Ele tentava, em vão, arranjar um naco de unha para roer. Observando a cena Chinfrino perguntou:
— Algo errado, Roni?
— Você ouviu? Ouviu o tiro?
— Não! Não ouvi tiro nenhum. Deite-se e durma, Roni.
— Chinfrino retornou ao leito e se deitou.
Estranhara a ligação telefônica do filho. Ronivaldo, por outro lado, se mostrava delirante e expunha situações fantasiosas.
— Esconda-se! O tiro, você não ouviu o tiro?
Chinfrino, irritado, ordenou.
— Não, porra! Deite-se e durma!
Chinfrino buscava silêncio para tentar dormir. Ronivaldo se enfiou embaixo da cama, colocou-se na posição fetal, e insistiu no delírio:
— Você está me enganando. O tiro! Eu ouvi o tiro...
Chinfrino, fazendo às vezes de psiquiatra, comentou:
— Roni, já falei que você não ouviu tiro nenhum. Você é esquizofrênico. Ouve o que ninguém mais ouve. Vá dormir.
— Ouvi o telefone! Morreu alguém?
— Não Roni, ninguém morreu. Relaxe...
— Você não quer me contar... Foi meu filho, meu filho morreu?
— Roni! — Chinfrino falou energicamente.
— Saia de debaixo dessa cama e vá dormir. Estou cansado. Já lhe disse que ninguém morreu.
Ronivaldo chora desenfreadamente.
— Foi você! Você matou meu filho! Foi você e seus cupinchas!
Ao grito, Ronivaldo fez menção de sair de debaixo da cama. Chinfrino pulou de seu leito para junto do criado-mudo, apertou o botão que acionava a enfermaria, e gritou com Ronivaldo tentando intimidá-lo:
— Se você sair de baixo dessa cama eu lhe cubro de porrada... Fique aí!
Em poucos segundos apareceu à enfermeira de plantão.
— Dona Maria, — Chinfrino diagnosticou, ainda assustado. — Roni surtou novamente.
Sem pronunciar única palavra, dona Maria se retirou. Pouco depois, apareceram dois auxiliares de enfermagem e puxaram Ronivaldo de debaixo da cama, aplicaram-lhe um “amansa leão” e o jogaram sobre o leito.
— Ronivaldo dormiria por aproximadamente dose horas.
Passados cerca de cinco minutos, dona Maria retornou para avisar a Chinfrino que ele teria horário marcado para o dia seguinte, pela manhã, às 10:00 horas, com a nova psiquiatra e diretora da clínica. Em silêncio, ela saiu, tendo o cuidado de trancar a porta do quarto. Chinfrino demorou a dormir, ficara imaginando o que teria levado Almir, seu filho, a querer visitá-lo após esquecê-lo por demasiado tempo.
2.
Pela manhã, logo após o desjejum, servido no quarto, Dona Maria conduziu Chinfrino para a consulta com a doutora Bianca. Enquanto caminhava ele observava a chefe da enfermaria. Caso fosse caracterizá-la, por certo diria que ela estaria mais apta a atuar como atriz em filme de terror a ser enfermeira. — Dona Maria era baixa e gorda, tipo um botijão de gás. Tinha o rosto redondo onde uma boca pequena de lábios finos e vergados para baixo cercava-se de buço marcante e bochechas caídas. A face lembrava-o as feições de um cão buldogue. Nela, nenhum sorriso, nenhum sinal de humanidade.
Ao chegarem à porta consultório da psiquiatra dona Maria se retirou. Chinfrino entrou no consultório cautelosamente. Estava desconfiado da tal doutora Bianca, porém, ao vê-la de pé encostada na mesa se estacou para observá-la. Um clima cênico pairou no ar. Chinfrino de inicio visualizou os cabelos pretos e curtos trançados com miçangas presas as pontas moldando o rosto oval com traços finos que dava realce a lábios carnudos. Os olhos verdes contrastavam com a pele morena. Aos poucos, o olhar de Chinfrino deslizava pelo corpo esguio que acentuava bustos e ancas rijas e harmônicas da bela fêmea. Chinfrino ficara fascinado. Não se lembrava de ter visto na vida mulher tão bonita. Imaginava-se a beijá-la quando foi interrompido pela médica.
— Algo errado, senhor Chinfrino. — A doutora falou com uma voz doce, sensual.
Chinfrino sentou-se no divã. Havia notado várias diferenças no consultório. A parede fora pintada recentemente. Trocaram o branco gelo por um claro tom de mostarda. A luz, agora mais suave, tornava o local mais tranquilo. No ar havia um perfume de flores silvestres que combinava com o som-ambiente. Ainda, no mesmo tom de voz, calmo e compassado, após se sentar na poltrona ao lado do divã e cruzar as pernas torneadas, a doutora iniciou a consulta:
— O senhor sabe me informar por que foi internado?
— Sou louco! — Ironizou Chinfrino.
— O senhor se considera louco?
— É o que dizem, né?... Não estou confinado aqui?
A doutora apanhou sobre a mesa uma pasta, dessas escolares, de papelão, passou a vista rapidamente sobre os papeis em seu interior e disse:
— Pelo relatório do meu colega o senhor é portador de esquizofrenia. No entanto, sem querer ser antiética, prefiro confiar em meu próprio diagnóstico. Conte-me. O que o levou a estar internado aqui?
— Posso começar da infância?
— Comece de quando o senhor achar melhor.
— Isso eu já contei ao doutor Orlando, seu antecessor. Eu nasci lá na Ribeira, mas não me lembro nada de lá. Só depois que fui morar na Pituba é que guardo lembranças. Eu ainda era bem guri. Meu pai e alguns amigos compraram quatro casas que ficavam juntas. Na verdade eram cinco, mas de amigos de papai só eram quatro. Ficavam na Estrada do Cascão. Hoje chamam de Avenida Paulo VI por causa da visita do Papa à Bahia. Naquela época, só havia mato e as casas eram espremidas dentro da fazenda de Joventino Silva. Minto... Na nossa rua, fora as cinco casas, existiam mais duas e o Terreiro de Candomblé. Havia a casa do velho Babão, pai de Waltinho, e a do vigia dos “Correios e Telégrafos” que ficava junto à casa de Babão. Esse vigia era um homem grande e forte e eu nunca soube o nome dele. Sei que ele criava galinha e era onde eu e Waltinho roubávamos uns franguinhos... Quer que eu conte essa história? — Doutora Bianca não se manifestou. — Foi por causa dela que tomei minha primeira e última surra. Nós pegávamos nossos badogues e matávamos os franguinhos que o cara criava solto no quintal. Arrancávamos a cabeça, depenávamos os bichinhos e dizíamos, na casa de papai, que eram patos d’água. Era uma festa. Dona Maria, que eu chamava de Véia, empregada lá de casa, preparava as aves assadas. Papai adorava os “patinhos”. Nós também. Comíamos à noite. Eu e Waltinho cada um pegava um e íamos comer em um lajedo próximo ao Terreiro de Candomblé que de terra não era. Era piso de cimento e emparedado com bambus vergados unidos como telhado, assim como na entrada do Aeroporto Dois de Julho que também mudaram de nome. De lá, ficávamos olhando o firmamento e tomando “Qui-Suco” de limão... Sabe, doutora? Só quem nunca olhou o firmamento numa noite sem lua, no total escuro, pode duvidar da existência de Deus...
— O senhor é Católico?
— Deus é muito maior do que supõe qualquer religião, doutora. Quando eu falo do mar, da mata, da fartura de vidas, eu falo de Deus... E se eu digo que o mar da Pituba tinha fartura foi porque Ele assim quis... Só pra senhora ter idéia, nas férias escolares, eu e Waltinho acordávamos ao cantar do galo, pouco antes de o sol nascer. Bebíamos café com leite e comíamos beiju na manteiga, “Manteiga Aviação”, da melhor que havia... Papai comprava aquelas latas de dez quilos. Depois do café, pegávamos uma lata de manteiga vazia e íamos para o Bico de ferro.
A senhora é nova e não deve ter alcançado o Bico de Ferro. O Bico de Ferro era uma vila de pescadores que se misturavam alguns veranistas. Ficava onde é hoje o Jardim dos Namorados e ia até quase o Jardim de Alá. Do lado direito de quem olha de frente para praia ficava o coral. Ficava não, fica. É moribundo, mas está lá... Só sumiram o banco de areia e os peixes... Como estava contando, doutora. Quando a maré baixava deixava cardume de petitingas rodando entre o coral e o banco de areia. Não havia erro. Eu e Waltinho, com um lenço-de-cabelo, desses de mulher usa para cobrir bobes, um de cada lado, segurando pelas pontas, afundávamos o lenço e quando o cardume passava levantávamos de arremesso e uma porrada dos peixinhos caiam no banco de areia. Era só catar e encher a lata. A dificuldade era levá-los até em casa. Tínhamos que revezar. A lata ficava cheia até a boca. — A Senhora conheceu as latas de Manteiga Aviação? Papai só comprava manteiga “Aviação” ou “Constelação” e em latas de dez quilos. Não era essa pobreza de margarina vagabunda que se vende hoje não!... “Sem gosto e sem sustância”, como diria o velho Babão se ainda fosse vivo.
A Véia, coitada, tinha um trabalho retado para tratar os peixinhos. Botava uma a uma das petitingas num filete de água da torneira e pegava uma Gillete e cortava guelras abaixo. O filete da água retirava os bofes. Já limpos, ela jogava os peixinhos numa bacia de alumínio com água, suco de limão ou vinagre. Ela não tirava a cabeça. Dizia que era rico em “frósfu”. Depois de passados no limão a Véia jogava os milhares deles na farinha de pão e fritava no dendê com uma cebola anteposta. Papai chamava os vizinhos e todos se banqueteavam com o manjar. Ele, meu pai, falava com orgulho: “— Com esse meu filho tirado a índio não há de faltar comida em casa”. E era verdade. Eu era meio mateiro e meio pescador. Minha pontaria no badogues era de espantar. Às vezes, à noite, eu ia fastiá. Pegava uns peixes bestas que pulavam pra canoa. Noutros maiores eu metia o arpão no meio das fuças, os bichos se debatiam até morrer. Mamãe não gostava, tinha medo, mas Véia, com seu jeito, dizia: — Chinfrino imita voz e os trejeitos da velha:
— “Dêxa o miníno, sinhá. Deus não há de dêxa nada de ruim acontecer a ele, é meníno abençoado”. — E eu era mesmo, doutora. Só uma vez que, de besta, fui pegar numa caravela. Foi dor, febre, frio e queimação. O pior é que Waltinho estava sem mijo para fazer em cima... Não ria não, doutora. O único remédio pra caravela, água viva e cansanção é mijar em cima, e na hora.
Além de pescar nós caçávamos e sem medo de rastejante. De cobras? Eu e Waltinho éramos curados. Todos os dias, antes sair para caçar, tomávamos um gole de pinga com um pouquinho do veneno das malditas, no bar de Salvador, depois íamos mascando fumo de rolo e cuspindo. Não ficava cobra no caminho, às vezes dava pra vê-las correndo devido ao cheiro da pinga misturada ao fumo...
— Então, seu Chinfrino. O Senhor não foi fácil na infância. Seus pais não o castigavam?
— Como já falei, tomei uma surra de meu pai. Um dedo duro entregou a papai que os patinhos, na verdade, eram os frangos do vizinho de Waltinho. Aí papai pagou o prejuízo e me deu uma surra daquelas. Ele me obrigou a pedir desculpas ao homem e como já estava viciado em comer os franguinhos me mandava comprá-los, geralmente, aos sábados. Mas eu me vinguei da surra. Eu e Waltinho fugimos para a ilha de Itaparica, ficamos lá uns quinze dias sem dar notícias.
— O senhor era danado mesmo, seu Chinfrino... Bem... Seu horário acabou.
— Ok! Doutora. Tenha um bom dia. Vou ficar aí fora esperando dona Maria.
— Não é necessário. Pode voltar ao seu aposento. Outra coisa, o almoço será servido as doze em ponto, no refeitório. Acabou a folga de se fazer às refeições no quarto. Esteja pronto no horário.
— Obrigado, doutora... Que mal lhe pergunte, como é mesmo seu nome?
— Bianca dos Santos.
— Não querendo desrespeitar a senhora, mas seu pai era cego?
— Não conheci meu pai... Seu pai também não foi muito feliz ao lhe batizar.
— Nisso concordamos plenamente, é que eu nasci prematuro, mirrado... Até a próxima, doutora.
Bianca permaneceu em silêncio, Chinfrino retornou ao quarto. Ronivaldo e as coisas dele haviam desaparecido. Chinfrino deitou-se na cama e deixou fluir fantasias sexuais. Creio imaginava-se com Bianca na praia do bico de ferro, ambos despidos de roupa e pudores. Talvez estivesse delineando mentalmente os enormes contornos dos rígidos seios da doutora em sua boca. Poderia até supor dele sentir o cheiro dela no ar. Masturbava-se ao ser interrompido por Filósofo, visinho de quarto, batendo insistentemente na porta. Chinfrino cobriu-se com o lençol disfarçando seu estado de excitação e disse “pode entrar, está aberta”.
3.
Filósofo entrou no quarto, encontrou Chinfrino deitado e enrolado no lençol, estava eufórico, queria expor ao amigo o resultado de suas reflexões filosóficas:
— Bom dia, Chinfrino. Acabo de concluir o pensamento que me faltava sobre a vinda de Jesus Cristo para a terra.
— Peraí, Filósofo! Isso é muito até para você. Você sabe que sou seu fã, no entanto, não ceio que você possa entender o que Deus queria... é muito...
— Siga o meu raciocínio e esqueça a vida de Jesus. Esqueça os milagres por ele realizado. Tudo isso aconteceu exclusivamente para provar aos homens da época que ele era realmente o filho de Deus. Detenha-se apenas nos seus ensinamentos.
— É complexo, Filósofo. Jesus ensinava através de parábolas.
— Não é complexo não. A princípio eu agi como um investigador, tentava achar contradições ditas pelo próprio Cristo.
— Ele entrou em contradições?
— Não estou sabendo me explicar... O que quero que você entenda é que Cristo não veio ao mundo para cuidar da dor física do homem e, sim, das dores espirituais da humanidade. Para uma mãe, o que há de doer mais: a dor do parto ou a dor da perda de um filho?
— Depende da mãe, Filósofo... Tem muita mãe filha-da-puta por ai...
— Sei! Mas o que estou querendo dizer é que a dor física uma vez superada é facilmente esquecida. Já a dor emocional é cíclica e só é curada pela fé. Existem duas formas de sofrimentos. Os sofrimentos físicos e os emocionais ou espirituais. Os sofrimentos físicos o próprio corpo cura, às vezes, com o auxílio de medicamentos. Já com os sofrimentos emocionais somente a fé em Deus e os ensinamentos do Redentor, ou seja, o perdão nos cura.
— Quer dizer que só Cristo pode curar as dores emocionais?
— É. Amando a Deus sobre todas as coisas e tendo fé em Deus pai tudo é possível. Até superar a morte.
— Não sou muito de religião... eu acredito que Deus quando deu aos Judeus os dez mandamentos deveria ter dado também as penas. Ele criou as leis, mas se esqueceu de regulamentá-las. Aí, os “deputados” da época, anexaram penas muito severas. Morrer a pedrada só por dar uma bibocadinha por fora... É muita sacanagem. Vou dar outro exemplo: não devemos cobiçar a mulher do próximo... e se a mulher do próximo nos cobiçar quando o próximo não estiver tão próximo? Quem aguenta?
— Estou falando sério, Chinfrino. Deixe as velhas piadas pra depois.
— Espere aí, Filósofo. Eu estou falando sério. Se seu Jesus sabia que iam torturá-lo e matá-lo ele foi um suicida. Eu tinha me picado rapidinho. Iria pregar em outras bandas. Mas, até ele, na hora agá, disse: “— Pai, por que me abandonaste? Etc. e tal”...
— Ele apenas cumpria as profecias. E ele sabia que era o cordeiro de Deus e que tinha que se sacrificar para nos salvar. Ele seguia fazendo o determinado e mostrava aos homens como viverem no amor. Sim. Ele sabia que seria crucificado. Contudo, e apesar de tudo, foi nesse exato instante, ao rogar ao Pai de seu abandono que ele entendeu a finalidade de sua vinda a terra, então, concluiu: “— Se cumpra sua vontade”.
— E qual foi à finalidade? Regulamentar as leis Divinas? Se matar?
— Também. Em vida ele demonstrou desapego a qualquer riqueza material, demonstrou desapego as regras morais vigentes em sua época, e por fim, demonstrou desapego à própria vida. Ele veio nos ensinar a amarmos sem apegos. A termos consciência da nossa imortalidade. Ele falava de outro plano, do plano espiritual. Cristo foi o primeiro feminista da cultura judaica.
— Vá se contalenhar, Filósofo! Que Deus perverso é esse que mata, de maneira perversa, o próprio filho! Deus é amor... Você mesmo de disse que o retado era o tal de Nietzsche. Alegava que tudo era superstição. Depois falou de um tal de Espinosa, disse que Deus patatí, patatá...— Agora vem com essa!
— Nietzsche escreveu que o intelecto humano para se conservar se aperfeiçoou na arte de mentir. E mentimos tanto que vivemos imersos em ilusões. E mesmo quem acredita saber a verdade passa longe dela...
— Esse tal de Nietzsche deve ter conhecido minha falecida mulher. Até quando queria falar a verdade, a danada mentia...
— Ouça! É sério! Na visão dele a necessidade de vivermos em bandos nos obriga a policiarmos nossos desejos. E ao apagarmos essa chama animal necessária a nossa liberdade nós nos privamos de nossos instintos humanos. Para convivermos, nós criamos por meio da linguagem as verdades imprescindíveis para uma convivência pacífica, que para Nietzsche: são apenas fantasias. Deu para entender?
— Não, mas continue...
— Os seres humanos não têm consciência da verdade, eles dispõem apenas das obrigações que a sociedade para existir estabelece. Temos a obrigação de mentir segundo uma convenção sólida. Mentimos em rebanho em um estilo obrigatório para todos. Ou seja, todo o conceito, tudo que você acredita que é uma convicção sua é na verdade conceitos de muitas gerações passadas que compramos como nossa. Segundo este pensamento o sofrimento emocional é tão irracional quanto o desejo pela felicidade. Somos governados por cadáveres...
— Quer dizer que é tudo um delírio coletivo...
— Não é bem delírio. Os homens sofrem porque foi ensinado assim. E assim, os fracos necessitam criar uma vida após a morte. Uma ficção. Uma estúpida ficção...
— Filósofo! Você é uma figura. Passou de cristão para ateu em um mesmo papo. Que tal falarmos de mulheres? Já esteve com a doutora Bianca?
— Já. Ela é muito boa pessoa...
— Boa pessoa, Filósofo!? Boa pessoa era minha finada mãe que me dava dinheiro... Ela... Ela é DELICIOSA! Mulher pra cem talheres. Que seios! Que pernas!
De modo nervoso Filósofo o interrompe.
— Você não está falando de mulher, Chinfrino. Você esta falando de comida. Ela não é comida...
— É sim! Pra que mais servem essas gostosas? Pica nelas...
— Sua colocação me ofende. Ofende minha falecida mãe, minha falecida esposa, assim como ofende também minhas filhas.
— Perdoe-me Filósofo, — Chinfrino baixa o tom — não tive a intenção de ofender. Eu falava das...
— Mesmo essas, ou qualquer uma. Mesmo que prostitutas, vadias, levianas, puritanas ou não. São seres humanos e não objetos de uso! Cabe o respeito.
— Certo! Você está certo, perdoe-me. Eu penso, que elas gostam de...
— Desculpas aceitas, mas não conclua... Me dê licença. Vou me arrumar pro almoço. Nos encontraremos no refeitório. Certo?
— OK!
4
Filósofo retira-se. Chinfrino se dá conta que alguma coisa havia mudado com a chegada de doutora Bianca. Raramente poderiam conversar assim, exceto em dia e hora de visitas. A surpresa foi muito maior ao chegar ao refeitório para o almoço. O local estava repleto de pacientes e, em sua maioria viciados em recuperação. Ao ver diferentes tipos de pacientes no mesmo refeitório, Chinfrino se lembrou de Gildete. — Gildete era filha de família abastarda e tradicional. Ela tinha, na visão de Chinfrino, uma maravilhosa doença, que era a mania de trepar, trepar e trepar. Na clínica, muitos dos auxiliares, enfermeiros e alguns dos pacientes desfrutaram dos favores da jovem e bela Gildete. Chinfrino fora um deles. Dizia-se insaciável Gildete. A moça era capaz de copular seguidamente com nove homens em uma única noite. Falavam a boca pequena, na época, que sua ninfomania derivava de ter sido violentada pelo próprio pai. Ele havia iniciado a filha no jogo do sexo, na infância, aos dez anos.
— Já acomodado à mesa, Chinfrino notou a chegada de Filósofo e o chamou:
— Filósofo!, Venha, sente-se aqui comigo.
Ao chegar, quando Filósofo ajeitou a cadeira para sentar-se, Chico Preto, de supetão, atirou-se na cadeira com modos rústicos impedindo-o de sentar-se. Chinfrino, para amenizar a situação, pôs a mão no ombro de Chico e disse:
— Filósofo, este aqui é Chico.
— E puxou outra cadeira para Filósofo.
— Já o conheço. Tudo bem, Chico?
Filósofo contemporizara o ocorrido. Chico acenou afirmativamente com a cabeça. Encheu a boca de comida dando pouca importância a presença de Filósofo. — Almoçaram bife de frango empanado com purê de batata. — Após a refeição, Chico divertiu aos da mesa com suas piadas obscenas. Na saída do refeitório, Chinfrino foi surpreendido com a presença de seu filho Almir.
— Oi pai, tudo bem com o Senhor?
— Dentro do possível, tudo bem. O que o traz aqui? Estou curioso...
— Pai, por favor, deixe as mágoas do passado para trás.
— Tudo bem. Vá direto ao assunto. O horário de visitas já acabou...
— Vamos ao jardim. Tenho a permissão da doutora Bianca.
— Conversaremos aqui mesmo, no corredor.
— Não, pai! Vamos ao jardim, o papo é longo.
Eles andaram até o jardim sem que nenhuma palavra fosse pronunciada. Chinfrino se sentou no primeiro banco que encontrou. Almir ficou de pé, apenas o olhava de viés, dava para sentir que ele não sabia como iniciar a conversa. Chinfrino rompeu o silêncio:
— Não é necessária nenhuma frescura. Vá direto ao assunto. Nós sabemos muito bem que eu não tenho nenhum desequilíbrio mental.
— Pai, estuprar uma...
— Não estuprei ninguém! E você sabe muito bem disso.
— Não foi o que eu vi...
— Você viu o que queria ver... Não foi para me acusar novamente que você está aqui! Vamos, desembucha! Diga logo! O que você quer de mim!?
— Estou precisando de uma procuração para poder recadastrá-lo no banco ou então seus vencimentos serão retidos.
— É só isso!? Meu dinheiro... Não vai me tirar daqui?
— O Senhor sabe que não posso. E sabe também que eu e Rosemeire não ganhamos muito. O que ganhamos não dá para sobrevivermos. Ainda mais com Luciano numa escola particular.
— Luciano só é meu neto nos custos. Nos seis meses que estou confinado neste sanatório...
— Clínica! Pai. E das mais caras...
— Paga com meu dinheiro! Seis meses. Nenhuma visita, dois ou três telefonemas. Sinto muito. Não vou assinar porra de procuração nenhuma. Sou um maluco estuprador. Esqueceu-se? Ademais, eu não me espantaria se você já tivesse ido diretamente a minha psiquiatra arranjar meios para tentar me desqualificar alegando insanidade.
— E fui, pai. Suas atitudes provam que o senhor perdeu definitivamente a razão... Mas, essa nova psiquiatra, aquela incompetente, se negou a me fornecer o atestado...
Muito irritado Chinfrino gritou:
— Seu filho-de-uma-puta! Se pique daqui! Vá embora ou lhe dou uma porrada... Seu corno sem caráter...
— Calma! Pai... Está vendo! O senhor está desequilibrado...
— Desequilibrado um cacete!
Devido aos ânimos exaltados, João, enfermeiro dos grandes, foi a Chinfrino em seu socorro:
— Algum problema, Chinfra?
— João, bota este cretino para fora... Faça-me o favor.
Bastou a presença de João para Almir se retirar. Ao sair, Almir ainda o ameaçou de procurar por um advogado. Os gritos de Chinfrino em resposta despertaram a curiosidade de alguns dos pacientes. Então, para fugir da saraivada de perguntas, Chinfrino caminhou até seu quarto a passos largos.
A raiva o consumia. Ao chegar ao seu aposento deparou com Filósofo.
— Algum problema, Chinfrino?
— Foi meu filho. Eu não aguentei o cinismo dele. Não aquentei a falta de caráter... Não o criei para ser assim...
— Acalme-se. Sente-se, respire fundo, e conte até dez. Tenho algo de terrível para contar.
— Um...dez. Pronto! Diga logo, Filósofo. Não estou para joguinhos...
— A Doutora Bianca está modificando tudo. A ala “C” ficou para os doentes graves, a “B” para os alcoólatras e viciados em drogas. E a nossa ala vai virar hospital dia. Estou apavorado, amigo. Vão me dar alta... Eu não quero sair daqui.
— Calma, Filósofo. Relaxe. O meu problema é muito mais grave do que o seu e eu não estou nem aí...
— O que seu filho queria? Chinfrino.
— Vou lhe contar tudo. Promete guardar segredo?
— Sou um túmulo.
— Bem... Tudo começou quando eu me aposentei. Eu estava morando sozinho. Almir, esse filho-de-uma-puta, tinha perdido o emprego. Acreditei que poderia dar um apoio maior a ele se ele fosse morar comigo. Convidei-o. Imaginei, na época, que seria uma boa idéia uma vez que a mulher dele, Rosemeire, também não estava trabalhando. Seria uma boa para eles, para mim e, principalmente, para Luciano, meu neto. Eles morando comigo economizariam no aluguel, no condomínio, na comida, e teriam tempo livre para procurarem outra opção de trabalho. Depois que se arrumassem eles alugariam outro apartamento e retornariam a sua rotina normal. Por outro lado, eu sentir-me-ia mais à vontade para curtir com Luciano e feliz por ter alguém com quem trocar idéias, fugir da solidão. As coisas seguiam bem, no entanto, o casal foi se acomodando a situação. Por preguiça minha, confesso, entreguei meu cartão bancário para Rosemeire e deixei que ela administrasse a casa. Aos poucos, minha nora foi assumindo o controle de tudo. Quando dei por mim, já era tarde demais. Com meu cartão e senha nas mãos, ela passou a administrar os ganhos e as despesas da casa. Com isso ela deixou de comprar meu uísque importado e passou a comprar do nacional, cortou outros dos muitos prazeres que eu tinha. Para você ter uma idéia, até minhas azeitonas Rosemeire parou de comprar. Dizia ser supérfluo. Restou-me apenas uma pequena mesada para comprar cigarro. Por não gostar de discutir fui deixando para lá. Com isso, o casal foi assumindo cada vez mais o controle da situação, e a cada dia, me deixavam mais de escanteio. Resolvi pegar de volta meu cartão. A cachorra, minha nora, resolveu que não me devolveria. Brigamos e retomei meu cartão na marra. Depois daquele dia o clima piorava rapidamente. Qualquer besteira servia de motivo para a vagabunda me chamar de senil, de velho gagá e por aí afora. No início, meu filho me defendia, mas aos poucos foi entrando no jogo da megera. Contudo, as coisas explodiram mesmo foi com a chegada de Patrícia, sobrinha da vigarista. Rosemeire havia convidado a sobrinha para vir morar conosco sem nem ao menos me consultar. Foi assim: certo dia, eu estava em meu apartamento coçando o saco. De repente a sineta tocou. E ao abri a porta uma moça, para mim totalmente desconhecida, foi entrando e beijando meu rosto e me chamando de tio e carregando mochilas e malas e me perguntando onde era o quarto dela, e,e,e... Fiquei espantado, fulo da vida. Telefonei para Rosemeire. Sabe qual a resposta dela?... O estorvo disse:
“— Ponha suas roupas no quarto de empregada, velho. À noite eu arrumo tudo. Ela vai dormir no seu quarto com Luciano. Lá no quartinho você vai ter maior privacidade. Veja bem, velho! É bom não tratar mal a moça... tchau...” E ela bateu o telefone em minha cara. À noite, Almir me esclareceu que a adolescente havia vindo estudar em salvador e não tendo onde ficar fora convidada para morar conosco e ajudar nos cuidados com meu neto.
— E você foi? Foi morar no quarto de empregada?
— E não é que fui! Eu já havia me afeiçoado a Luciano. Fiquei um tempo carrancudo, mas, aos poucos, fui aceitando a presença da babá. Notei que, mesmo em seus quatorze anos, ela havia se encantado comigo. Fazia meu prato, preparava meu gelo de água de coco, cuidava de conservar sempre minhas roupas limpas, passadas, e assim, em pouco tempo, as gentilezas de Patrícia despertaram em mim um carinho especial por ela. Meu filho e a mocréia conseguiram finalmente um trabalho. Ambos como vendedores na área de cosméticos. Patrícia, a babá, ajudava com a casa e nos cuidados a meu neto. Á noite, a menina estudava. Ás vezes Patrícia me pedia ajuda nos estudos e isso nos aproximou ainda mais. A garota demonstrava ser muito inteligente e madura para a idade. Ai, Filósofo... Viria a aconteceu o desastre que me deixou neste apuro.
— Conte, Chinfrino. A história está ficando interessante!
— Rosemeire, Almir e Luciano haviam saído para passar o final de semana na Ilha de Itaparica, lá com os parentes de minha nora. Eu, como de costume, saí com amigos pra beber umas cervejas e jogar dominó. Ao retornar à noitinha, ainda tonto devido aos uísques, fui tomar banho. Depois de vestir meu pijama retornei à sala. Pati. — Pati é Patrícia, fui eu que coloquei esse apelido nela. — Pati estava na sala assistindo um filme... Quando eu cheguei à sala ela me perguntou:
— Tio, posso assistir um filme picante?.
— Respondi que sim na maior inocência, Filósofo. Inocente, sentei-me no sofá ao lado dela para assistir o tal filme picante... Eu não maldei... Juro que não! Acreditei ser um filme do tipo “Atração Fatal” ou algo parecido... Até então, eu não sabia que se tratava de um filme de sacanagem explícita. Patrícia, então, foi e botou no DVD um filme pornô. Quando o filme começou fiquei espantado, avermelhei. Já ela, sem o menor constrangimento, me perguntou:
— Tio, o senhor tem vergonha de sexo?.
Eu fiquei sem jeito, tentei disfarçar... Falei que não. Que eu em meu tempo fui bom naquilo etc. e tal... Filósofo! Aí Patrícia segurou em meu pau, que há essa altura já estava inchando, e me disse que eu era um coroa muito enxuto e que iria me dar um trato...
— Poupe-me dos detalhes, Chinfrino. Você transou com a Patrícia.
— Claro, Filósofo! Não sou eunuco! Eu comecei na maciota, chupei os peitinhos e fui dando um banho de língua na moleca. Fizemos “meia nove”. Filósofo! Ela me chupava com maestria. Tem mulheres que nasceram pra trepar... e ela é uma dessas. Ainda menina e fodendo melhor do que muita coroa que existe por aí... Foi aí que adveio a merda. Quando eu já estava enfiado... Almir, Rosemeire e meu neto, que haviam perdido o ferry boat, chegaram de volta em casa, abriram a porta, e nos flagraram fodendo na sala... Porra, Filósofo! Fodeu tudo! A maluca da Rosemeire começou a fazer escândalo. Gritava que parecia uma doida. Berrava dizendo que eu estava estuprando a menina, e xingava, e reclamava, e me sacudia, e bradava tanto, e tanto, que me deu um branco... Fiquei nervoso, angustiado, confuso... Patrícia saiu, nua, correndo para o quarto e meu neto a seguiu, quando eu ia atrás dela... Rosemeire me segurou pelo cabelo. Começou a me chamar de tarado, de escroque, de crápula... Ela xingando e meu sangue esquentando... Aí o sangue ferveu... e eu... Puft! Dei um soco bem no meio da cara na vadia. Almir partiu para cima de mim... pau nele... a mulher dele estatelada no chão a gente se embolando e derrubando tudo... a porta escancarada... aí apareceram os vizinhos! Foi tudo muito rápido... Eu ali, nu em pêlo, seguro pelos vizinhos. Foi o caos. Enrolaram-me numa toalha e me levaram para o apartamento ao lado. Almir telefonou para um pronto socorro psiquiátrico. Meia hora depois chegaram dois enfermeiros e eu tentei reagi... Aplicaram-me um “amansa leão”. Quando acordei, estava internado nesta clínica. Patrícia me telefonou no dia seguinte dizendo que se ela contasse a verdade Rosemeire a poria na rua e ela não teria pra onde ir. Recebi também uma ligação de Rosemeire me pressionando. Ela ficou com o meu cartão e me ameaçou. Disse-me que se eu saísse da clínica ou bloqueasse o cartão ela daria queixa de estupro. Tentei conversar com Almir, mas ele estava a favor da mulher. Não quis nem me ouvir. Orlando, você o conhece, o que era o diretor até a semana passada. Ele só queria grana... Você sabe, Filósofo... Ele queria me manter dopado. Classificou-me de esquizofrênico. Veja que sacanagem...
— Há quanto tempo isso aconteceu, Chinfrino?
— Há uns seis meses mais ou menos. De lá pra cá ninguém veio me visitar. Só a Patrícia que, de vez em quando, me telefona. Mesmo assim, escondida. Se Rosemeire descobri-la bota ela pra fora, na rua...
— E por que a briga com seu filho? O que é que ele queria?
— Almir veio aqui para tentar pegar um atestado de insanidade e assim poder revalidar minha senha no banco. A Doutora Bianca negou-se a dar, então ele veio me pedir que assinasse uma procuração... Ele quer continuar recebendo minha aposentadoria... Eles se ferraram... Agora estão em minhas mãos... Vão se arrepender do que fizeram...
— O que você pretende fazer, Chinfrino?
— Ainda não sei. Só sei que vou me vingar da filha-d’uma-puta da Rosemeire.
— A vingança e o ódio são as armas dos tolos.
— Já sei!, Filósofo... Jesus Cristo.
— Não Espinosa... Ele diz que...
— Não! Pelo amor de Deus, filósofo! Não! Está quase na hora de o jantar. Vou me arrumar... Mas lembre-se, este assunto é confidencial.
— Então está certo. No refeitório conversaremos.
Aproveitando a saída de Filósofo, Chinfrino imaginar-se-ia com Bianca. Banhar-se-ia mais demoradamente que o habitual. Provavelmente para dar vazão aos seus delírios sexuais. Após se masturbar, Chinfrino chegou à conclusão que não deveria se precipitar. Esperaria pela consulta com doutora Bianca e lá se informaria melhor.
5.
No refeitório, o único assunto era o remanejamento dos pacientes. Depois de Chinfrino se inteirar dos pormenores das reclassificações, procurou uma mesa mais afastada para evitar as perguntas de outros internos. Filósofo chegou ao refeitório e foi direto se sentar com ele e enquanto jantavam conversaram.
— Já soube das fofocas? — Perguntou Chinfrino.
— Já. Só que não são só fofocas, Chinfrino. Eu mesmo vou ter alta amanhã.
— Você não está feliz, Filósofo?
— Não. Preferiria ficar aqui.
— Por que, Filósofo? Você é única pessoa normal neste sanatório.
— Normal?
— Normal! Sadio! Assim como eu... Agora que eu atentei ao fato... O que houve para você ser internado aqui, Filósofo?
— Não gosto de falar sobre este assunto.
— Qual é! Somos ou não somos amigos? Pode me contar eu sou um sepulcro.
— Eu tentei suicídio.
— Sei...
— Não! Não sabe... Você não tem a mínima ideia.
— Sem querer ofendê-lo, Filósofo. Tentar se matar e continuar vivo é incompetência. Bastava encostar uma 765 no palato e puf... Morreu! Ou então, comia um fígado de baiacu... Lá no Bico de Ferro, quando eu era garoto, uma nega matou um sargento do exército com uma moqueca de baiacu, e com um baiacu que eu havia pescado...
— Foi mesmo?
—O cara tinha que morrer porque era um sacana. Ele, um sargento do exército, era amante da tal negona... uma negona bonita pra caralho que enviuvou dum pescador de lá do Bico de Ferro. Enviuvou nova. Tinha uma filhinha de dez anos... bonitinha a danada. Esse sargento fodia a mãe e abusava da menininha e, quando a mãe descobriu, disse que iria denunciá-lo se ele não parasse de abusar da menina. Aí o perverso quase matou a negona de porrada e ainda enfiou um taco do cabo de vassoura no furico lá dela... Isso quem me contou isso foi a mãe de Pipira que era filho dum jangadeiro de lá... Deixa que eu conte essa história...
— Claro!, Chinfrino. Conte.
— Foi assim... Eu havia pegado um baiacu de espinho, era avermelhado de barriga amarelada e de mais de três quilos, que eu peguei sem querer, peguei no anzol. Era um bicho feio pra caralho, parecia um monstro e eu fiquei com medo dos espinhos terem veneno. Aí dei umas pauladas no bicho pra ver se ele largava meu anzol, ele se debateu e inchou feito bola... Não morreu não, ficou fechando e abrindo a boca com o anzol grudado... Aí, eu fui chamar Pipira que eu não queria perder meu anzol da sorte... Pipira havia saído, mas a mãe de Pepira me mandou pedir pra negona que era vizinha dela, disse que ela iria, disse que ela estava doida pra achar um baiacu e que precisava dele... Eu fui. A negona estava com um dos olhos preto-azulado, mais preto que ela devido ao hematoma. Na boca, o beiço de cima, estava inchado e cortado que mal dava pra ela falar direito, mas foi eu contar do baiacu que os olhos lá dela brilharam e ela riu com a boca troncha e foi comigo e arrancou o anzol e quis comprar o baiacu e eu disse pode ficar que eu não quero não. É venenoso. Ela disse só o fel, e completou, eu tiro e faço moqueca. Depois soube que sargento chegou bêbado, usou da menina de novo e foi e comeu a moqueca e disseram que dormiu e pronto. Morreu de morte matada sem um grito. E ficou por aquilo mesmo que ninguém entregou à negona... Disseram pra polícia que ele que pescou e cozinhou o peixe e se ferrou merecido... Mas me conte, Filosofo. Mudei de assunto e não esperei você contar sua tragédia... Fale. Vá. Me conte...
— Eu já disse. Não gosto de tocar neste assunto.
— Não! Falando sério, Filósofo. Por que alguém culto, rico e inteligente quer se matar?
— Não vamos mais falar sobre isto, Chinfrino.
— Eu lhe contei minha façanha. É sua vez, desembucha...
— É doloroso para mim.
— Conte. Sou um túmulo! Pode confiar.
— Solidão... Minhas filhas foram morar no exterior e minha amada mulher faleceu. Tentei ocupar o tempo trabalhando, mas não funcionou. Não tinha mais amigos. O tempo foi matando um a um. Qual a graça de estar vivo? Perdi a vontade de viver. Queria morrer. O problema é que detesto sangue. Queria uma morte limpa e de preferência sem dor. Fui à cozinha, abri o gás e me deitei pra morrer em paz. Por azar, o zelador do prédio sentiu o cheiro do gás, arrombou a porta e me impediu. O síndico telefonou para a polícia e eles me trouxeram para cá e aqui estou a mais de dois anos. E acredite que eu me sinto bem melhor aqui do que na minha casa.
— Cara corajoso o zelador... e se a porra explode?... CARALHO! Tive uma idéia!, Filósofo. Se você me ajudar a resolver meu pepino nós iremos morar juntos. Meu apartamento é próprio. Têm dois quartos mais dependências... É só dividirmos as despesas. Agora tem uma coisa. Você não se mata e cada um vive na sua... Veado eu sei que você não é...
— Acho você um capadócio, Chinfrino. Mas gosto de você. Se tiver mesmo que sair daqui eu topo. Mas meu apartamento é de cobertura, tem quatro quartos mais gabinete e está vazio. Ficaremos morando lá.
— O meu é melhor, é pequeno e não dá trabalho. Você aluga o seu, e vamos pra putaria... têm uma porrada de coroas atrás de umas ferroadas...
— Você parece uma criança, Chinfrino. Gosto disto em você...
— Quem morre de véspera é peru de natal e mesmo assim, bêbado! Quero aproveitar o que ainda me resta de vida.
— Vamos lá! Vamos analisar seu problema. Para isso é necessária estratégia. O que você tem a fazer é conseguir o maior número de informações possíveis, conhecer bem os inimigos... Eu não quis falar que eu acredito que a Patrícia estava de conluio com sua nora... Acho que foi tudo armado. Isso já não interessa. É bom que você converse com a doutora Bianca sobre sua situação. Veja também sua condição junto ao seu fundo de pensão. Ligue para o banco. É bom, também, que consulte um advogado sobre as possíveis complicações do assédio a Patrícia. Não deixe de ver a situação de seu filho e de seu neto, é família. Após essas informações verificadas, conversaremos. Vou ter que ir. Tenho consulta. Até mais tarde.
— Vá com Deus, Filósofo. Chinfrino retornou ao quarto, analisando a possibilidade de Patrícia fazer parte de uma armação contra ele. No caminho encontrou-se com dona Maria e gracejou:
— Tudo bem, dona Maria. Agora que não precisa mais ficar me vigiando está sumida!
Ela, para total estranheza de Chinfrino, sorriu. Sorriu um sorriso de vitória. E ele não se conteve:
— Dona Maria!, a senhora riu! Eu pensei que fosse banguela. Nunca a vi sorrindo antes...
— Pois é, Chinfrino. Vendo vocês naquela situação não havia do que sorrir. — Respondeu se explicando:
— Eu não tomava uma posição por medo de perder o emprego. Mas doutor Orlando abusou tanto de vocês que tomei coragem e redigi uma carta aos donos da clínica contando como ele assistia aos pacientes. Minha sorte é que ele já vinha sendo investigado por desvio de verbas.
— Então foi a Senhora? Eu a odiava. Perdoe-me.
— Tudo bem. Não se esqueça do horário da consulta amanhã. Tenha uma boa noite, Chinfrino.
— Pra senhora também.
Sentindo-se culpado pelas inúmeras pragas que jogou em dona Maria, Chinfrino se arrependeu, mas sua principal preocupação era o que expor a doutora Bianca. Temia precipitar-me e estragar tudo.
6.
Na manhã seguinte, não demorou a chegar o horário da consulta. Chinfrino entrou na sala no horário marcado. Doutora Bianca o elogiou na pontualidade. Ele se sentou no divã e esperou que a ela tomasse a iniciativa e revelasse o pedido feito por Almir. Mas ela permanecia calada.
— Então, doutora? — perguntou Chinfrino.
— Continue sua história, Chinfrino. Estou esperando.
— Onde eu estava?
— O senhor havia fugido para Itaparica.
— Sim. Lembro-me agora... Foi dureza. No início, eu e Waltinho comemos do pão-que-o-diabo-amassou. Dormimos na rua sentindo fome, frio e sede. Porém, depois me ocorreu a idéia de pescar siri. A maré estava vazia... Fizemos mais de quatro cordas e saímos vendendo os siris nas barracas da praia. Além de ganharmos uns trocados o dono de uma das barracas gostou da gente e almoçamos em troca de lavar os pratos. À noitinha, Waltinho inventou de irmos ao cemitério roubar velas. Lá tinha um túmulo todo feito de mármore com aquelas portas de ferro e com vidros coloridos que chamam vitral. Ficamos morando lá naquele túmulo. Arranjamos papelões e fizemos as camas. Ficamos por mais de uma semana. Só fomos descobertos porque Waltinho tinha contado a irmã dele onde íamos e ela abriu a boca. Meu irmão foi até Itaparica, nos achou e nos trouxe de volta pra casa. Eu fiquei de castigo, mas nunca mais meu pai me bateu.
— Há algo de sua infância que ainda queira me contar?
— Bem... Vou continuar... Depois de um tempo conhecemos Wellington e viramos um trio. O pai de Wellington era Sargento do Exercito e isso facilitou as coisas pra gente. Nós, eu, Waltinho e Wellington quase que paramos de pescar e de cassar. O grande negócio se tornou jogar bola. O porreta é que fomos crescendo junto com o bairro e quando ficamos adolescentes e já pensávamos em garotas elas apareceram com os novos prédios que foram sendo construídos na Pituba. Eu me lembro de minha primeira vez. Wellington havia ido morar em outro estado com a família. Waltinho se enamorara de uma ripe e sumira pelo mundo. Eu havia ficado sozinho, sem amigos. Papai vendo que eu estava sem amigos teve dó e comprou um título do Clube Português da Bahia. Foi lá que conheci Jussara. Ela era uma menina linda, mas ninguém queria namorá-la a sério porque ela era surda de nascença e não sabia falar... Quero dizer, ela falava com sinais... Aí eu fiquei doido por ela e me aproximei e aos poucos fui aprendendo o alfabeto dos dedos... depois os sinais de mãos. Terminei por namorá-la. Aos domingos, depois do baba, eu ia para o parquinho e ficava esperando ela. Aí aconteceu. Eu pensava que ela era virgem porque eu era. Um dia, Jussara foi lá para casa. Papai já havia ido dormir, e “Veia” estava de folga. Foi dentro do quarto de “Véia”. Foi aí que eu descobri que Jussara já tinha experiência... Tinha tanta experiência que eu fiquei cheio de chatos. A senhora sabe o que é chato? Não sabe? ... É um bichinho que dá nos pentelhos e no saco... Em mim se espalhou até pelos cílios. Na época eu pensei que papai ia me bater novamente, mas o velho ficou foi orgulhoso. Mamãe dizia que papai era machista e se retava quando ele fazia chacota. Mas eu não dava importância aos chiliques de mamãe. Era entrar empregada nova na vizinhança que eu comia. Com as filhinhas de papai, naquela época, era esparro. Tinha de casar... Hoje não, estão fodendo desde cedo, menininhas de 14, 15 anos já fodem... soltaram as frangas. E a veadagem, doutora? De haver, havia veado em minha época... Tem uns que nascem assim, mas hoje em dia é mais por descaração, por moda. Influencia da TV. Deve ser, sei não. Em minha época veado era veado, hoje gay... Americanizaram até a veadagem! Sim! Esqueça a veadagem. Eu ia contar que uma vez eu fui foder uma sarará e peguei pinga pus. Foi uma gonorréia das bravas. Tive que ir ao doutor Boureau, se escreve bê ó bó, rê é ré...u.. reau , com “u” no fim. Médico de macho, urologista dos bons. Ele me passou algumas “não-pode-sentar” e eu fiquei bom.
— O que é isso?
— Desculpe-me, doutora. É Benzetacil de um milhão e seiscentos UI... Dá na bunda. Ai, não pode sentar. Como estava dizendo, doutora... Tive uma infância e uma adolescência muito boa. Não lembro se contei que eu e Waltinho jogávamos capoeira e lutávamos boxe. Saiba que nem eu, nem Waltinho, procurávamos briga com ninguém. No mais, era estudar, trabalhar e esportes. Dava tempo pra tudo... Bem doutora, perdoe-me a digressão. Agora o assunto é deveras sério. Soube que meu filho esteve aqui e pediu a senhora que desse um atestado me desqualificando para gerir minha vida. O que aquele sem caráter quer, realmente, é ficar com minha aposentadoria e morar definitivamente em meu apartamento, de graça. Ele subornou o seu colega para isso. Apesar de minha permanência aqui ser paga. Deve sobrar muita grana para que ele tenha o interesse em me manter internado aqui...
— É verdade, Chinfrino. Realmente seu filho me falou que o senhor tem uma tara por adolescentes, é alcoólatra, e seduziu uma menina de quatorze anos. Isso não deixa de ser um problema. O abuso sexual de menores é crime. Porém, este assunto é de ordem jurídica. O nosso assunto é o seu desajuste social. E eu espero continuar com sua terapia. Contudo...
— Eu não vou negar que houve o início de uma relação sexual com Patrícia e que ela é menor de idade... Mas daí a dizer, doutora. Que eu há seduzi! Isto é a mais pura mentira. Patrícia tem mais horas de cama que o urubu tem de vôo. Pelo menos, nas preliminares, foi bem melhor do que muitas das coroas que eu já fodi por aí. Patrícia tocava-flauta maravilhosamente bem... O que ocorreu, na verdade, foi que eu cheguei em casa um tanto bêbado, ela colocou um filme pornô, locado não sei por quem, nem onde, e começou a me alisar... Sou homem, doutora... senti tesão e quando íamos às vias de fato fomos surpreendidos por meu filho e nora que fizeram a maior presepada e se aproveitaram da situação para me roubar. Minha nora me acusou de estupro e mandou me prenderem aqui com a conivência de doutor Orlando. Mas é tudo uma questão financeira...
— Não estou defendendo teses, Chinfrino. Muito menos pretendo agir parcialmente na sua relação familiar. Cabe-me apenas diagnosticar uma possível doença mental. O Senhor tem tomado os remédios prescritos por doutor Orlando: Haldol 5 mg, Psicosedin 25 mg, Amplictil 100 mg e Dormonid. Um comprimido à noite. Estou certa.
— Completamente errada, doutora. Só fiquei dopado no início devido à injeção. No dia seguinte da internação cuspia todos os comprimidos que me davam. Não tomo porra nenhuma. Para não levantar suspeitas, me fiz de idiota e fingia tomar... Posso ser maluco dentro de sua visão psiquiátrica de um peso duas medidas... Eu realmente não gosto muito desta sociedade hipócrita, mesquinha, cínica e niilista em que vivemos que não se pode mais confiar nem nos próprios filhos... Tudo, agora, é dinheiro. Americanizaram o povo brasileiro que hoje vende a mãe por dois tostões e prostituem os filhos para comprar um par de tênis ou um novo carro. Vejo políticos comprovadamente ladrões que estão soltos e curtindo a grana em bacanais em Brasília, juízes safados se safam numa boa, tudo à custa dos impostos e da penalização dos aposentados... Cuecão de dólares, sanguessugas, presidente cego concorrendo à reeleição e tudo bem já que ele será reeleito com os votos descaradamente comprados sob a batuta de marqueteiros inescrupulosos... É tudo normal... Agora, eu vou dar uma trepadinha com uma mulher que já fode há anos e que é mais furada que túnel de metrô e tenho que ficar preso num manicômio por seis meses... Ah!, vá a merda!, doutora... Tudo isso é por causa do meu dinheiro... merda de dinheiro. Tudo por causa desse falso progresso que só favorece aos déspotas e aos hipócritas mentirosos com seu regime escravocrata nomenclaturado de neoliberal... Eu acredito que se nos devolverem o planeta e nos deixarem plantar árvores frutíferas nos jardins das cidades. Se nos deixarem transformar cada pedaço de chão em hortas e em cada canteiro nos permitissem plantar ervas medicinais, nosso povo não necessitará de qualquer governo ou de qualquer dinheiro para alimentá-lo. Muito menos será necessário indústria para nos impor o medo e nos entupirem de remédios e enlatados... Basta proibir que poluam os rios e os peixes pularão pra mesa de cada ser vivente em nossa terra. Basta deixarem o mar livre da sujeira que o povo encherá suas latas com petitingas e fará fogueiras nas praias e assarão pinaúnas e comerão com lagostas... Depois dançarão diante da lua e cantarão canções e farão amor e serão espontâneo cada um na sua natureza. E cada ser terá a liberdade conseguida com o suor de seu rosto assim como era antes da terra, presente de Deus a todos os seres, possuir donos. E quer saber mais, doutora? Pegue seus medicamentos e os enfie na bunda. Bunda por sinal muito bonita... Tchau!
Chinfrino saiu do consultório sem olhar para trás, estava certo de ter estragado tudo e caminhou para o quarto em silêncio. Poucos minutos se passaram quando dona Maria apareceu com um copo plástico com suco nas mãos.
— Perdoe-me — disse Chinfrino a Dona Maria — Mas nem penso em deixar que me abarrotem de remédios.
— A doutora Bianca mandou dar um suco de maracujá e não remédio. Pediu para dizer que ela o aguarda no consultório. Pode ir sem susto, Chinfrino. Doutora Bianca é uma excelente profissional, ela sabe o que faz.
Chinfrino bebeu o suco e retornou ao consultório. Entrou na sala meio sem graça. Doutora Bianca foi logo discursando:
— Achei sua teoria de plantar alimentos em praças públicas muito criativa. Talvez nossa sociedade não seja perfeita. Sei que ela é cheia de regras e normas a serem seguidas. Sei que na maioria das vezes a sociedade é injusta. Porém, para se conviver, são necessárias regras de conduta e limites a serem respeitados. Não vi no senhor nada que o desqualifique, por enquanto, a viver em sociedade. Estou assinando sua alta. No entanto, estou marcando uma consulta por semana para que eu possa fazer uma melhor avaliação do seu caso. E muito obrigada pelo elogio ao meu traseiro, — a doutora sorriu, — meu marido tem a mesma opinião sobre minha bunda.
Sem dar mais uma palavra, Chinfrino sai da sala e vai direto ao quarto de Filósofo para encontrá-lo:
— Então, como foi à consulta, Chinfrino? — Perguntou Filósofo.
— Estou livre! Amigo! LIVRE! Só tenho que resolver o problema com Almir. Vou botar toda aquela turma para fora de meu apartamento. Faço isso hoje, agora!
— Não! Nada disso. Você vai morar comigo. Isso já é certo. E nada de vinganças. Lembre-se de Espinosa.
— Você já me falou sobre Espinosa.
— Eu guardo comigo um trecho que copiei... Deixe-me procurar aqui...
Filósofo mexer e remexeu no pequeno armário e encontrou um caderno e nele o texto. — Achei! Ajeitando os óculos, Filósofo iria iniciar a leitura, mas foi interrompido:
— “Quem quer vingar-se...”.
— Pára, Filósofo! Este cristão não foi internado a contra gosto. Pimenta no fiofó dos outros, não arde! Não estou nem aí para o que este coroinha falou...
— Muito pelo contrário... ele foi excomungado pela Igreja Católica, bem, deixa pra lá... Vai Chinfrino, liga para seu filho e dê a ele um tempo para sair de seu apartamento e mantenha uma mesada razoável... Pense primeiro em seu neto. Lá em casa você só vai precisar de dinheiro para as suas despesas pessoais. O resto, eu já pago.
— Faço questão de dividir. Já estou velho para ser sustentado.
— Você é quem sabe. Ligue logo para seu filho. Eu já estou com tudo arrumado.
Chinfrino telefonou para casa. Patrícia atendeu.
— Alou...
— Tio! É você?
— Pati. O Almir está aí?
— Está... É verdade que o senhor vai botar todo mundo na rua?
— Claro que não! Vou morar com um amigo. Só quero acertar uns pormenores com Almir.
Sussurrando, Patrícia conversa com Chinfrino.
— Telefone pra me dar o seu novo endereço. Temos que terminar o que começamos. É só lembrar que o segredo é a alma do negócio e que quem come e guarda come sempre... Serei sua novamente... lhe devo essa... Almir está vindo, me ligue... Tchau!
— Pai?
—Almir... Sou eu. Vou ser direto... Saio hoje da clínica e vou retomar minha vida. Deixo vocês ficarem ai no meu apartamento enquanto não precisar dele. Nos seis próximos meses vou lhe dar uma pensão de quinhentos reais a você e é só. Quero meu cartão do banco ainda hoje ou dou queixa de furto. Estou indo morar com um amigo e quando estiver acomodado telefonarei. Avise a megera de sua mulher que se ela tentar qualquer coisa contra minha pessoa mando botar ela e você na cadeia. Sei que vocês pagaram propina para me manterem aqui... É... Estou bem assessorado por um advogado e tenho o apoio de minha psiquiatra... Você entendeu?... Ótimo... Dê um beijo em meu neto... Até mais. Virando-se para filósofo pergunta,
— Fui bem, Filósofo?
— Maravilhosamente bem... Vamos?
— Só uma pergunta, Filósofo. Como é mesmo seu nome? Não é Filósofo!?
— Não! É Bonaparte... Napoleão Bonaparte...
Ricardo Matos,
Salvador - Bahia
— Pai, o senhor vê as mulheres de dentro de uma ótica doentia... Mulher não é assim... O senhor é muito sacana... esse conto é pornográfico...
Zé Ricardo ruborizou, fez cara de sério, disse me respeite, e explicou:
— Eu? Não! E minhas personagens são reflexos da realida. Você, filha, ainda é uma jovem mulher e até aprender o que tem que aprender, tenho certeza, sofrerá muito. Você se envolve passionalmente com tudo, até com um simples texto. E às vezes escolhe ver coisas de segunda relevância. Se não me engano, Shakespeare, em Hamlet, escreveu: “Aquilo que em paixão foi resolvido / Finda a paixão, carece de sentido”. Veja a arte com distanciamento estético. Vida é vida, arte é arte. Não sou sacana. E minhas personagens apesar de fictícias são simbólicas e denunciam tabus reais, não existe em minhas personagens este sentido maniqueísta de bom e mau ou bem e mal. Todos são heróis e vilões ao mesmo tempo. Na minha maneira de ver a vida o mau ou mal é a ignorância, a fantasia tola, o bom ou o bem é a verdade em sua causa divina ou física. Existiria prazer sem dor. O sofrimento espiritual e o abuso sexual foi parte do tema deste conto? Tentei mostra um pouco de o conflito ético que está aí na vida. A mãe espancada por um companheiro que abusava da filha criança foi morto envenenado, o que se fazer, esquecer a assassina? Um filho que interna o pai para receber sua aposentadoria e usa de uma adolescente como escrava para cuidar do filho que a mãe não quer fazê-lo, sem ao menos se preocupar em cuidar da adolescente que vê-se problemática e que tarou o velho aposentado. Coisas que acontece na vida real... Você nem pensou sobre o que você leu... E certo que temos que saber diferenciar o que é ficção do que é realidade. Temos que ter, como já lhe disse diversas vezes, distanciamento estético do que lemos. Porém, não é apenas ler. Tem que se pensar sobre o que se leu. Algumas vezes temos que buscar o simbolismo nas entrelinhas.
— Desculpa, pai, não me fiz entender. Meu senso prático tem que analisar seus personagens de uma maneira prática: Chinfrino deste conto e Rubens do outro mostram certo ódio pelas mulheres, e minha professora disse que por mais que o escritor negue, ao criar personagens, consciente ou inconscientemente, ele reflete-se nelas...
— Não necessariamente. Sua professora deve ter lido isso de algum psicanalista idiota... Não acredite em tudo que dizem, não acredite em tudo que for ler... O que não falta são donos da verdade falando e escrevendo bobagens. Eu apenas conto histórias para levar o leitor a pensar sobre elas. No caso deste conto trato de assunto de difícil compreensão para uma jovem educada dentro de um conceito social cristão. Dentro de uma religião que cultua o sofrimento. De um Deus pai que manda sacrificar o filho numa cruz para quê? Para lavar com seu sangue os pecados do mundo? Não nego que por vezes deixo transparecer opiniões que podem ou não ser válidas ou aceitas. Quer ver? Leia este conto aqui. É mais fácil...
Zé Ricardo escolhe, entre sua papelada, outro conto de sua autoria e entrega-o a filha. Ela o lê:
“Xaréu
Quando criança, costumava, nas férias, acordar e ir à praia para assistir arrastões. Deslumbrava-me ver os pescadores invadirem as águas do mar, e de lá, buscar os peixes que eu saboreava de diversas maneiras, preferencialmente, nas moquecas feitas por Maria. Uma mulher humilde, de nenhuma letra, mais muito culta nos sabores baianos. E numa dessas vezes, fui notado e convidado por um jovem pescador de nome Pipira para acompanhá-lo: Era cedo para o dia. Cedo também para mim na busca de uma vida de obrigações. Certo dia eu andava ao nascer do astro rei, prelúdio da manhã, com Pipira, beirando o mar e observando a maré. Naquele dia, em especial, o sol demoraria a sair devido ao cinza escuro que encobria a linha imaginária no vergar do oceano...
— Olha, Zé! Ta vendo!? Lá no fundo! Não está vendo o encrespar da água!? É xaréu! Cardume grande vindo pra a beira. Vou buscar meu povo. Fique de olho. Olha lá, Zé!
Pipira, eufórico, repetiu a sentença apontando o dedo para o cardume de peixes:
— Lá por baixo das gaivotas, não está vendo!? É tainha e xaréu. Vou correndo. Prenda os olhos nas gaivotas ou no encrespado da água e não perca de vista... Volto já.
Ele saiu numa carreira só. Eu fiquei ali espiando sem ver, mas fingia avistar, as gaivotas e o cardume crispando na flor d’água. — Estava frio. Não o frio seco da serra de Vitória da Conquista, onde eu morava. Era um frio diferente. Era um frio úmido de vento cortante e de fazer tremer o queixo, era frio salitrado. — Pipira corria para, em meio às cabanas de taipa, gritar: — Xaréu!... Xaréu! E eu o olhei berrando e correndo em disparada e, novamente, voltei meus olhos para nada ver na flor d’água a não ser o mar.
Atendiam aos gritos homens fortes, adultos e moços, que corriam em direção às canoas na praia do "Chega Nego". Toros, feitos com troncos de bananeiras, eram sobpostos como rodas e a revezá-los sob as canoas, os homens empurravam as embarcações que escorriam em direção ao mar até atingirem a linha d’água.
As ondas da maré altas elevavam as proas em direção ao céu onde estouravam fazendo surgir da espuma expandida belos arco-íris. As mesmas pessoas que empurraram as canoas entravam totalmente na água e se dependuravam nos bicos e nas laterais impedindo que elas virassem. Já, de pé, sobre o barco maior, imponente, Pipira gritou:
— Vem Zé!, monta logo, corre! Vem! Eu ajudo...
O medo que se apossava de mim foi espantado pelos gritos alegres de Pipira. E eu, menino de rio, tremendo de frio, pulei as espumas das ondas arrebentadas enquanto corria até a popa da canoa, oposta a proa, de onde Pipira continuava a reger os bravos pescadores:
— Ajudem ele! O menino é nadador. Ajudem-no a subir!
Ainda me lembro das mãos ásperas de um galego forte que me segurou pelas coxas finas e me atirou para dentro da canoa maior. O solavanco levou-me a cair sobre uma macia rede de náilon.
A canoa que eu estava ia à frente com Pipira vogando e cantando no ritmo das remadas firmes. A chuva prevista iniciou mansa e foi ganhando força, engrossando os pingos e dando maior beleza ao tapete azul do mar na medida em que encrespava, ainda mais, os respingos provocados pelos peixes que agora eu podia ver nitidamente.
O cardume serpenteava indo e voltando. Alguns peixes pulavam a ermo, outros, invadiam as embarcações. Quando chegou o momento de jogar a rede Pipira gritou:
— Arria! Arria!
Seus dentes brancos me mostravam a alegria dos que vão buscar a vida sem medos, onde o trabalho é só gozo.
A bracejar, a tresmalhos era solta pontilhando o mar com bóias brancas, de isopor, enquanto a chumbada, pesada, afundava sua parte de vez. E assim era feito o cerco em arco.
Os canoeiros começavam, então, a bater os remos na água com vigor. Pipira atirou-se ao mar da proa da canoa e foi nadando e gritando:
— Vem Zé! Ajuda a cercar!
Seguindo seus comandos eu me joguei atrás dele:
— Espanta pra rede! — ele gritava — Vai, Zé! Bata na água! Espanta pra rede...
Um vulto escuro se desviava dos sopapos dados por mim na flor d’água, enquanto nadando, eu fui cercando os peixes onde a trama de náilons não havia chegado. Quando me cansava, com o corpo gelado e dolorido, apoiava-me numa das embarcações para que outras gentes se atirassem em minha substituição. Só Pipira não buscava descanso. Só Pipira não sentia frio. Só Pipira não tinha medo dos peixes acertando seu corpo. E sorrindo gritava me incentivando:
— Venha, Zé. Está gostosa a água...
E lá ia eu de novo. Engolindo o cansaço para dar tapas e mais tapas na água e sentir os toques de peixes e mais peixes em fuga no pavor dos caçados.
Mesmo exausto, busquei forças e, com os lábios arroxeados e os dentes batendo, continuei nadando e dando novos tabefes para espantar os peixes de volta pra rede até chegar à beira da praia, onde, quase sem forças, pude buscar outro curto descanso. Atrás de mim já vinha Pipira gritando e trazendo a corda da rede de arrasto arrumando os homens e elevando o grito:
— Vem, Zé! Não afrouxa não! Vem que a corda é dura e um "homem" só faz falta.
Os homens do arrastão se perfilavam para puxar o cordão grosso de sisal. Calejavam ainda mais as mãos ao arrancarem delas carnes mortas que ensebavam as tramas. E eu lá, entre eles, sangrando as minhas mãos finas de menino e ouvindo Pipira cantar:
— Arabô aiô Iemanjá! Puxa a corda nego que tem peixe bom / puxa nego / puxa nego / que é benção de Iemanjá...
Era um consoar de arrepiar os cabelos e de aliviar sofrimentos. Eram mais de trinta vozes, a cantar em coro, num gemer só: Rum / rum / rum // rum / rum / rum. — Era um som nasalado e de esplendorosa beleza.
Os corpos sincronizados oscilavam num vai e vem de meneio, suplantando as dores, puxando a tresmalho como em um cabo de guerra, até os peixes darem na areia e brilharem prateados ao se debaterem. Enquanto alguns dos homens catavam os peixes, Pipira brincava de matar caçonetes intrusos a pauladas. O sangue que escorria deles avermelhava a espuma que lambia a areia úmida.
Os pescados eram amontoados no centro da praia e os homens formavam um circulo em torno esperando a partilha. Pipira se colocou no centro e ao lado do amontoado de peixes. Eu fiquei no circulo enquanto a chuva, grossa, tirava-me o sal da pele. Um dos homens que chegou depois tentou me espantar. Pipira gritou:
— Deixa o menino! É nadador! É de coragem! E você negão? Ta molhado é de chuva! Nem suou! Mostra as mãos... Amostra!... Saia você, descarado! Mão branca!
O suor espantou-me o frio, o sangue em minhas mãos, o medo. E eu ganhei o respeito de todos. O respeito de quem foi à vida com coragem de enfrentar seus temores... E ganhei meu quinhão de peixe. E ganhei o sorriso de Pipira, como um troféu, ao esfregar a mão rude e fétida sobre meus cabelos lisos. Mesmo sendo cedo para o dia. Mesmo, que para mim, ainda fosse cedo para uma vida de obrigações.
Alguns anos se passaram até que eu pudesse voltar à praia do "Chega Nego," em Salvador. Fui com meu filho. Saímos cedo para o dia. Queria que ele visse um cardume de xaréu crispando o mar. Porém, não havia mais xaréu. Como não havia mais vila de pescadores com suas casas de taipa. Como não havia mais canoas para romper a crista das ondas e, ao estourar, a fazer formar lindos arco-íris no ar. Como não havia mais nem mesmo as redes estacadas e esticadas para os silenciosos remendos nos buracos abertos por caçonetes intrusos. — Momentos mágicos de silêncios e preces.— Nem mesmo Pipira estava lá para cantar seus jongos e dar lições de coragem. Lições que um menino com frio e com medo aprendeu. Lições de uma coragem de alegria necessária, uma coragem de suor derramado para buscar o fruto a ser dividido por quem se molhou e sangrou as mãos... E tudo isso acabou em nome de um progresso descompromissado com a natureza, um progresso burro, bruto, enriquecedor para uns poucos, mas de alto custo para todos os humildes que, em nome dele, foram marginalizados.
Ricardo Matos 1997
– Costa Azul Salvador – Bahia.
— Gostei, pai. Dos contos que eu li do senhor achei este o melhor, parabéns.
— Eu também gosto deste.
— Neste eu cheguei a ver os pescadores na labuta. Gostei mesmo. Tem outro.
— Tenho. De outro estilo...
— Me dê...
— Leia este, mas sem falso moralismo:
— Zé Ricardo entrega folhas soltas a filha.
No papel de rosto lê-se,
“O Bom Rapaz.
Dorival andou até o ponto de táxi. Sentia-se apreensivo por sua momentânea situação financeira. Era fim de mês e restava-lhe na carteira uma única cédula de dez reais. Enquanto se acomodava no assento dianteiro do carro de praça, observou o taxímetro, que já cobrava, de saída, aproximadamente um terço do seu numerário.
— Para onde, doutor? — Perguntou-lhe o jovem motorista.
— Leve-me a uma agência do banco Bradesco mais próxima, por favor.
— Tem o da Pituba e o do Iguatemi? As distâncias são relativamente iguais...
— Sendo assim, vamos ao da Pituba. É mais vazio. Minha preocupação é dinheiro. Só disponho de dez reais na carteira e já estourei o limite do cheque especial. Se não depositaram meu salário, estou fodido! Destes dez reais ainda espero que sobre, pelo menos, o do ônibus de volta pra casa, caso aconteça o pior. Explicou, ao taxista, Dorival, demonstrando fidalguia.
Dorival é um senhor de meia idade, 1,6m, calvo, atarracado, e portava um tom acinzentado no olhar, mostrando, para um bom observador, seu momentâneo descontentamento financeiro.
— Oito dão. — Pressupôs, o valor da corrida, o taxista, — Ponha o cinto, por favor.
Enquanto cumpria a ordem, Dorival tinha fé que o salário estivesse creditado. Lembrou-se que em casa, com a despensa quase vazia, a amante e companheira desdobrava-se para preparar uma moqueca de carne com ovos, feita com as sobras do lombo do dia anterior.
— Reconheço o senhor. — Afirmou o jovem motorista.
— Não duvido, ando muito de táxi. Sofro de labirintite, o que entre outros inconvenientes, impede-me de dirigir.
— Seu nome não é Dorival? Dorival acenou, afirmativamente, com a cabeça e completou:
— Foi uma homenagem que meu pai resolveu prestar ao grande cantor e compositor Dorival Caymmi. Papai dizia: — "Caymmi é o único cantor brasileiro que transmite toda a manha do baiano ao cantar...”
— Pois é, doutor. Fique o senhor sabendo, que se hoje estou livre, devo isso ao senhor.
— A mim?
— Sim, ao senhor. Estou notando que o senhor não se lembra de mim.
— Honestamente? Não me lembro. Deve ser a idade, na minha idade a memória vai se esvaindo.
— Quando eu contar minha história tenho certeza que o senhor se lembrará de mim.
Meu nome é Antônio Carlos, também foi uma homenagem que meu pai prestou, só que ao Senador ACM, "O Cabeça Branca”.
— Seu pai é “Carlista!?”
— Não só meu pai. Toda a minha família é eleitora de Antônio Carlos Magalhães. Porém, não era sobre este assunto que eu queria lhe falar. Quero é lembrar ao doutor de onde é que nós nos conhecemos.
— Tudo bem, Carlos. Sou todo ouvidos.
Em frente, um enorme engarrafamento impõe lentidão ao trajeto a ser percorrido. Novamente, Dorival observou o taxímetro que registrava: quatro reais e cinqüenta centavos.
— O senhor não mora no condomínio Costa do Atlântico? No STIEP?
— Atualmente, não. Morei lá. Mas mudei-me há alguns meses.
— Isso não vem ao caso. Como estava dizendo, eu tinha ido ao bar que fica dentro do condomínio onde o senhor morava...
— Sei. O "Bar de Nonato!”
— Ele mesmo. O senhor estava sentado. Bebia cerveja junto do balcão. Naquela época, eu trabalhava como segurança: carro forte, segurança de banco, essas coisas. Eu tinha ido até lá porque estava seguindo minha mulher... Eu suspeitava que ela tinha ido se encontrar com o amante. Então, parei no "Bar de Nonato" para beber umas pingas e tomar coragem pra matar a vadia e o sacana que estava "faturando" ela. Foi aí que o senhor notou que eu estava armado, nervoso e bebendo. Então, o senhor puxou assunto e me chamou para tomarmos cerveja. Me lembro como se fosse hoje. O senhor disse que não valia a pena eu me sujar, ser preso, correr o risco de ser usado como galinha no presídio por causa de uma vingança burra... Na hora, o senhor parecia Jesus Cristo falando. Depois, quando eu já estava mais calmo, o senhor tomou a arma e a entregou ao dono do bar. O senhor se lembra de mim agora?
Um arrepio frio subiu pela espinha de Dorival, por um momento ele empalideceu, mas instintivamente, seus pensamentos se voltaram mais uma vez para o taxímetro, e olhando de relance e disfarçadamente, pôde notar que o marcador registrava cinco reais e cinquenta centavos.
— Agora, me lembrei, Carlos. E fico feliz por ter sido útil. O propósito de se tornar um uxoricida é burrice, é... — Carlos interrompe o discurso de Dorival.
— Posso lhe fazer uma pergunta muito pessoal, doutor?
— Claro! Pode perguntar.
— O doutor já foi chifrado?
— É uma pergunta pessoal, sem dúvida, e um tanto quanto complexa. Para lhe ser sincero, nunca me preocupei muito com este tipo de assunto. Vejo o adultério por uma ótica muito pessoal... O adultério... como eu poderia lhe explicar... o adultério é mais um dogma religioso. Não é algo de maior gravidade. Talvez, seja de maior gravidez. — Zombou Dorival na resposta — É que sou um cínico agnóstico, um seguidor do hedonismo... Da liberdade humana.
— Ta falando grego, doutor... Não entendi patavina.
— Grego não. Sobre gregos... Vou ser chulo... Para mim, é melhor ser um corno feliz do que um onanista triste. Entendeu?
— O doutor está de brincadeira. Não está?. Quer dizer que o doutor, além de não acreditar em Deus, ainda por cima, não se importa de ser corno?
— Primeiro: Deus é quem não acredita em mim. — Dorival, novamente, falou ironizando — E, como já lhe falei, sou incrédulo. Quanto ao adultério... meu pensamento é simples, mas fica complicado para explicá-lo...
— Tente, doutor. Talvez eu entenda.
— O fato é que o adultério não conseguiria me induzir a sofrimentos maiores. Não aceito que me atribuam responsabilidades por atos praticados por outras pessoas. Se a mulher que está comigo for buscar prazeres físicos com outros homens, é escolha dela, não minha. A ação será dela, não minha. Por força de consequência, nenhum argumento poderia ser atribuído para me responsabilizar por quaisquer atitudes dela. Acredito ardentemente que eu sou livre até para perdoá-la por tais atos, caso queira. Não me sinto devedor de satisfações a ninguém... Exceto, ao imposto de renda... Fui claro!
— O senhor não me respondeu a pergunta... — Interrompeu Carlos, ansioso, por não ter obtido a resposta desejada.
— Certo! Você quer saber se já fui corno? Provavelmente sim, se não física, com certeza espiritualmente... Se já fui, de fato, chifrado carnalmente, até então, não fiquei sabendo. Respondi agora a sua pergunta?
— Respondeu. E é por isso que o doutor acredita ser loucura matar uma adultera. O senhor não sabe a dor, o desespero que dá. É como se alguém lhe tirasse o chão sob os pés... — a voz de Carlos saia arrastada, tremula, em falsete.
Dorival interferiu interrompendo a narrativa do taxista.
— Calma, meu jovem! Mesmo que realmente isso lhe tenha acontecido, é passado. Não vale a pena você ficar remoendo esta dor. Se isso ocorreu, não pode mais ser mudado, e é tolice guardar sofrimentos. Perdoe o deslize de sua ex-mulher. O perdão é uma dádiva e só nos faz bem.
— Doutor Dorival, se o senhor soubesse o ódio que esta lembrança me provoca. Eu conheci Verônica ainda menina lá no meu interior. Namorávamos desde que éramos crianças. Na época, eu tinha doze anos, ela tinha onze, um ano a menos que eu. Quando fiz dezoito, papai foi pedir a mão dela ao compadre. Casamos na Igreja de papel passado e tudo. Até lua de mel nós tivemos, doutor. Foi meu tio quem pagou. Ficamos em Canavieiras por uma semana e quando voltamos da lua de mel, ela ficou morando na casa de papai, e eu, então, vim para Bahia para trabalhar com meu tio. Eu dava um duro danado. Todo o dinheiro ganho eu juntava. Centavo por centavo. Eu não bebia, eu não fumava, eu só trabalhava. Eu fazia tudo para economizar. Trabalhei duro, de sol a sol, até que consegui comprar uma casa-de-alvenaria, lá em Pirajá. Mobiliei a casa toda: armários, cama de casal, geladeira, fogão, televisor a cores, comprei até um DVD para aquela puta. E fui fiel a ela, doutor! Mesmo minha mulher morando longe de mim, eu era fiel...
— Calma!, Carlos. Você está destemperado. Acalme-se — Dorival olhou o taxímetro. Piscava em vermelho: nove reais e cinquenta centavos. — Carlos, por favor, encoste o carro. O dinheiro que disponho não vai dar para cobrir o valor da corrida. O restante do trajeto eu faço a pé.
— Não. Nada disso! Fique tranquilo, doutor! — Como estava lhe contando, depois de tudo pronto, mandei o dinheiro e minha mulher veio para Salvador. Foi o tempo mais feliz de minha vida. Eu rezava pelo final do expediente só para correr pra casa. Vivíamos juntos. Eu só saía com ela e ela só saía comigo. Foi assim até a cachorra da Sueli fazer amizade com minha Verônica. Foi aquela piranha que botou minha Verônica a perder. Foi depois que minha Verônica conheceu a tal da Sueli que ela começou a usar saia curta, biquíni enfiado na bunda e a pintar caras-e-bocas.
— Carlos! Isso não significa que ela o traiu. Isso faz parte da vaidade feminina. É comum a todas as mulheres...
— Até pode ser, doutor. Mas ela comprou um bocado de calcinhas de renda, e tinha uma delas, com um coração vermelho costurado bem na testa da boceta. Outra coisa, doutor. Ela passou a raspar os pentelhos... E o pior é que quando ela ficava em casa ou saia comigo, só usava os calçolões de algodão que ela trouxe do interior, mas quando ia sair sozinha, era de calcinha de renda que saía...
— Será que ela lhe traia mesmo, Carlos? Todo o cuidado é pouco, meu jovem. As aparências às vezes enganam.
— Doutor, ela mudou... Antes ela só queria ficar em casa cuidando das nossas coisas. Depois desta tal de Sueli é que minha Verônica apareceu com a conversa de trabalhar fora de casa. Foi a puta da Sueli que arranjou as malditas faxinas para minha Verônica fazer. Além do mais, um amigo me disse que o porteiro do prédio onde ela fazia as faxinas disse a ele que ela estava de caso com um coroa lá do edifício. Lá no condomínio que o senhor morava.
— Será que esse cara era mesmo seu amigo, Carlos? Ou ele tinha inveja de vocês? Existe muita gente maldosa neste mundo.
— Foi verdade, Dorival! Ela me chifrou mesmo!
— Você perguntou a ela?
— Perguntei. Mas ela não quis falar, é claro! Apenas me contou que só foi ao prédio receber o dinheiro das faxinas. Mas, eu sei que ela estava mentindo. Tanto é, que depois que eu saí para trabalhar, ela pegou as roupas dela e sumiu. Acho que foi morar com a tal da Sueli... É bem provável que o doutor tenha conhecido. O senhor conheceu?
— Dificilmente! Eu não tinha amizades por lá, muito menos com uma menina. Foram poucas às vezes em que fui ao Bar de Nonato. Eu frequentava os bares da orla, de preferência, os da Pituba.
— Ah!, doutor. Se o senhor a tivesse conhecido, o senhor saberia do que eu estou falando. — O jovem fala com ternura e ódio da ex-mulher — O senhor não iria esquecê-la nunca. Aquela vagabunda era linda, era não! Ela é MA-RA-VI-LHO-SA! Morena cor de jambo. Os olhos grandes da cor de caramelo, os cabelos lisos e sedosos com aquele tom de cobre velho. Cor natural. Vai até o rego da bunda. O sorriso é de um branco que magoa as vistas da gente. Um corpo, doutor! Coloca no chinelo qualquer uma daquelas dançarinas da televisão. E como era fogosa na cama... Vige Maria!
— Você tem procurado por ela, Carlos?
— Para que, Dorival? Para ser visto como corno? Eu sou homem, doutor. E homem que é homem tira o sebo do pau e come.
Carlos cala-se por instantes buscando conter as emoções. Seus olhos ficam avermelhados e deixam escorrer pequenas lágrimas. Dorival guardou silêncio. Quando Carlos voltou a falar, a voz saiu rouca, arrastada, chorosa.
— Ufa! Naquele dia, doutor, ela só não morreu porque o senhor, em nome de Jesus, me impediu. — Carlos dá uma pausa, respira fundo e recomeça — E este favor vou lhe dever até que Deus me busque.
— Você se separou legalmente, Carlos?
— Ainda não. Meu tio é que está providenciando a tal da separação. Ele me disse que ela não quer nada de mim. E graças a Deus nós não tivemos filhos para colocarmos no meio.
— É verdade. Em uma separação quem mais sofre são as crianças. Mesmo assim, é melhor se separar do que manter um relacionamento ruim. Você é jovem, tem toda a vida pela frente, e ela, com sorte, pode até encontrar algum outro homem.
— Eu não quero nem pensar nisso, doutor. — falou Carlos com raiva. — Por mim ela fica por aí: “pulando de pau em pau que nem galinha em poleiro”.
Dorival, ao ver que o taxímetro ultrapassou a cifra dos doze reais, exclamou!
— Carlos, este taxímetro está querendo me ferrar! Como você está sabendo, só disponho de míseros dez reais, e se o dinheiro não foi creditado, só irei poder lhe pagar oito reais. Ainda bem que estamos chegando.
Em poucos metros, Carlos estacionava o táxi em frente ao banco. E antes que Dorival exprimisse qualquer pensamento, foi antecipando:
— Calma, Dorival! Vou esperá-lo aqui o tempo necessário para que o senhor possa resolver o seu problema. Vá tranquilo. Se o dinheiro estiver depositado, tudo bem. Caso contrário, levo o senhor de volta e depois acertamos.
O dinheiro fora depositado, porém, estava bloqueado para saque. Dorival retornou ao táxi aborrecido e acabrunhado. Ao chegar, notou que o taxímetro estava desligado. Dorival entrou no carro com ar de derrota e tentou negociar:
— Carlos. Amanhã acertaremos o debito.
— Para onde, Dorival?
— Vou voltar para casa. Fica perto do ponto onde eu lhe apanhei.
— O senhor, é Bahia ou Vitória? — questionou Carlos, mudando o rumo da prosa.
— Bahia...
Carlos e Dorival retornaram conversando sobre o Esporte Clube Bahia, e a sua atual fase na segunda divisão do campeonato brasileiro. Ao chegarem frente ao edifício de Dorival, ele tentou uma nova negociação.
— Obrigado, Carlos. Anote o endereço de meu escritório. Amanhã eu te pago a diferença...
Dorival tentou entregar os dez reais a Carlos. Carlos insistiu na recusa.
— Esqueça, Dorival! Até qualquer outro dia...
— Então, muito obrigado, você é um Anjo. Até mais, Carlos.
Ao chegar a seu apartamento. Sua linda morena da cor de jambo, demonstrando ansiedade, perguntou-lhe:
— O dinheiro saiu, amor?
— Foi depositado, mas está bloqueado para saque. Só posso retirá-lo amanhã. Passei o maior sufoco, porém, seu Deus enviou-me um Anjo.
— E desde quando você acredita em Anjo, amor?
— Desde hoje! Querida... desde hoje!
— A propósito. À noite, quero que você use aquela calcinha de renda.
— Qual delas?
— Aquela que tem um coração vermelho...
Costa Azul, Salvador Bahia”
— Achei dez. A calcinha com coração vermelho... E suas personagens não são sacanas? Né, pai.
Enquanto falava Viviam remexia na caixa de papelão para reorganizá-la onde encontrou cartas soltas, correu as vistas sobre elas e perguntou:
— Pai, encontrei algumas cartas de meu avô aqui, posso lê-las?
— Claro! Pode ler.
E ela leu:
“Dalva, beijos.
Aqui vai o primeiro relatório para que você se mantenha informada do que acontece:
1.
Fomos condenados (9 meses para mim, 7 para Gorender) não na base das acusações, perfeitamente ineptas, oferecidas pelo promotor Andrade, mas a partir do entendimento de que eu e Gorender teríamos violentado o que diz o artigo 39 da Lei de Segurança vigente, a última. Parece-me que dito artigo diz respeito a ofensas às Forças Armadas. Que ofensas? Não sei. Parece que tudo resulta de um despacho publicado por “Folha da Bahia”, em princípios de março de 1964. Temos, portanto, esta coisa espantosa: faz-se uma Lei para enquadrar fato já ocorrido. O raciocínio para mim fica claro : se, até a pouco, a ninguém era dado desconhecer o texto da Lei, ou das Leis, doravante teremos de imaginar o que uma lei futura irá capitular. Do contrário, cana.
2.
O tratamento aqui, na Casa de Detenção, na medida do possível, está sendo o melhor. Na verdade, muito melhor do que poderíamos esperar. Podemos receber comida de fora. Estamos em quarto especial, sem grades, as portas abertas — e é possível ver o mar e ainda o jardinzinho que fica aqui defronte. É simpática, a coisa. Tem acácias e flamboyants, banquinhos para os namorados, e o demais. Inclusive, agora, meninos que jogam bola na grama.
3.
Podemos ouvir rádio e ver televisão. Virá a do Gorender.
4.
Podemos, sobretudo, escrever. Isto significa que o “tutu” está garantido. Aliás, deixe-me logo dizer, a solidariedade dos amigos é comovente. Maurício poderá lhe contar algo a esse respeito. O Contreiras, por exemplo, ficou até três horas da manhã providenciando cama, travesseiros, colchas, roupas, etc.
5.
Disse-me Fred que você esta de ótima moral. É uma notícia que reputo excelente. Veja se pode providenciar o seguinte:
a) um esparadrapo pequeno
b) um tubo de Farmicetina p 7 (ou 7 p), algo assim.
c) duas canetas bic, uma azul e outra vermelha.
d) uma tesourinha de unha.
e) um espelho pequeno, desses baratos.
f) os exemplares de: “La colonie penale”, de Kafka, os dois dicionários de francês que eu tenho aí, todos os exemplares de “La Nouvelle Critique” e o exemplar do “Le Observateur” que tem na capa uma reportagem intitulada “Les soldats pertdus” ou algo parecido.
Peça a Wilter (telefone para o “Jornal da Bahia” : 3-2471) que me remeta os três últimos números do “Observateur” que ele tenha em casa.
g) Mande-me, ainda, o exemplar da “Divina Comédia” e os volumes 1 e 2 da “Comédia Humana”. Por enquanto é só. Garanto a você uma coisa: com tempo e tranquilidade vou ganhar aquele prêmio de teatro de que lhe falei, 1.000 dólares e a viagem à Europa. Talvez em fins de junho estejamos lá. Agora, beije, por mim, Fred, Jorge, Vanja e Guiga. Dê parabéns ao Fred: ele se portou como homem, corajoso, realista e eficiente. A Fred só faltam um pouco mais de senso de responsabilidade e vontade férrea para o estudo e a leitura organizados. Tenho toda a confiança nele. Não nos faltará. Mais beijos para você.
Ari
Consiga-me ainda: papel pautado e “batalha naval”. Tranquilize o pessoal lá de casa, especialmente a Voninha que ainda se mostra incapaz de compreender quanto é essencial, numa hora dessas, manter-se tranquila e confiante. Atenção: em algum lugar aí de casa existem dois sacos contendo um pó branco. É um corretivo de solo. Use-o na proporção aproximada de 50 gramas por m2 para ver se ajuda as plantas do jardim. Especialmente as roseiras. Não é possível que as flores não surjam. Sapeque o corretivo nelas, pondo-o sob a terra. Faça a experiência e me diga depois”.
— Acaba aqui, pai.
— Essa carta , filha, foi escrita por seu avô na época que ele esteve preso...
— Pai, eu notei uma coisa. Meu avô mandou minha avó beijar todos os filhos menos você. Por que isso? Ele lhe esqueceu?
— Sei lá! Provavelmente eu estava passando uns dias fora de casa. Mas isso não é importante. O que realmente importa é a maneira como seu avô encarou a prisão. Mesmo preso ele sustentava a ternura para com a família e mantinha nossa moral elevada. Queria saber do jardim, das rosas que não floriram...
— Isso foi durante o período do regime militar, não foi, pai?
— Foi. Meu pai foi preso por duas vezes.
A primeira foi no 19 B.C, quando empastelaram o jornal que ele dirigia. Tem uma pasta plástica amarela com alguns recortes sobre seu avô...
— Já sei, pai. Apanhe a pasta. Onde?
— No quarto de sua avó, no maleiro do armário do lado direito.
A jovem foi ao quarto, apanhou a pasta e retornou, no rosto da jovem já se notava-se ânsia para estar com os irmãos no Shopping, mas a chuva continuava forte atrasando-a. Pensou em pedir ao pai para levá-la de carro, mas suprimiu o desejo. Gostava de agradá-lo ao demonstrar interesse nos assuntos paternos. Zé Ricardo pegou a pasta, abriu-a, remexeu e encontrou um texto escrito pelo jornalista e professor universitário Othon Jambeiro sobre Ariovaldo Matos. De seus olhos passaram a emanar um estranho orgulho. E após respirar fundo, contendo-se, Zé Ricardo entregou o texto à filha. E ela leu:
“Ari, um jornalista
Enquanto vivemos temos muitos modelos de comportamento. Na infância e adolescência, o pai, algum tio ou irmão mais velho, amigos bem-sucedidos com as garotas ou bons jogadores de futebol, e assim por diante. Na juventude, a natural e progressiva reformulação de nossas referências sociais, trazem ao palco outras figuras. São atores, intelectuais, artistas, que passam a conviver com pelo menos parte dos modelos anteriores, no nosso imaginário. Recortados aqui e ali em pedaços de conduta que usamos para construir, estes modelos aos poucos se esvaem de nossas mentes. Usados no que nos convém, são depois jogados no esquecimento, descidos do Olimpo, banalizados. Há, contudo, os que não sucumbem à cruel cirurgia de estripação que reduz quase todos a personagens desimportantes, restos imprestáveis. Os que ficam, ainda que mutilados num ou noutro aspecto, são os modelos verdadeiros, consistentes, que nossa engenharia humana não consegue dividir em partes. Guardam uma integridade que resiste ao desmonte. Exibem uma articulação moral, psicológica, profissional, cultural, social, política, ideológica, que impossibilita separar o homem do que faz, do que pensa, de como age, do que produz. São unos. Ariovaldo Matos era um desses seres humanos indivisíveis. Se tomado como modelo, vinha por inteiro. Não importa se quem o admirava preferisse o político, ou o escritor, ou o teatrólogo, porque logo concluiria que o comportamento político, os livros e contos, as peças teatrais traziam todos a mesma compreensão da vida, da sociedade, dos homens. A expressão do teatrólogo estava na política, assim como o político se esparramava às vezes nas linhas, às vezes nas entrelinhas de tudo que produzia. Ari foi um dos mais intensos modelos de comportamento que passaram na minha vida. Capturei-o para meu imaginário no dia-a-dia da redação do semanário Folha da Bahia. Era um sujeito com vocação inegável e consolidada para o jornalismo, um editor na acepção plena do termo, um líder intelectual, um formador de profissionais. Corrigia os erros usando ora a crítica franca, dura mesmo, ora a lógica implacável da relação entre os fatos e de seus referenciais político, econômico, social e cultural. Dominante, impunha-se pelo saber e pelo saber pensar. Era um jornalista, em primeiro lugar, e um chefe de redação em segundo. Um chefe que decidia, que tinha a última palavra quando necessário, que assumia ser o ponto final no comando do jornal. Na Folha da Bahia ele era um misto de redator-chefe, copy-desk e chefe de reportagem. Havia vários profissionais de alto valor sob seu comando, mas repórter mesmo, durante boa parte da vida do jornal, havia somente um: eu. Que além disso, estimulado por Ari, também acompanhava a composição, a revisão, a montagem e a impressão, na gráfica. Uma espécie de secretário gráfico capenga, porque meu poder decisório era rigorosamente nenhum. Mas ele praticamente me obrigava a isto, tão forte era sua insistência, porque acreditava — e explicava frequentemente — que o verdadeiro jornalista tinha de entender como o jornal era feito, isto é, todo o processo produtivo, desde a reportagem até a distribuição. Quando, mais tarde, entrei para o curso de jornalismo, na Universidade, confirmei que tinha razão. Fechada a Folha da Bahia pelo Exercito, em 1964, voltei a trabalhar com Ari, em 1967, por três meses, como secretário da redação do IC Shopping News. Ele era o redator-chefe. Aperfeiçoei ali, com ele, meus conhecimentos de diagramação, composição e a montagem das páginas da Folha da Bahia na gráfica onde era impresso. Sob seu comando, escrevia também pequenas notas, mas basicamente cuidava do aspecto gráfico do IC. No outro turno trabalhava — também aplicando o que tinha aprendido com ele — como correspondente da Folha de São Paulo. Convivi com vários outros profissionais e tive bons professores no Curso de Jornalismo da UFBA. Deles tirei o que pude de conhecimento e de comportamento na vida privada e no exercício profissional. Ari, contudo, marcou-me definitivamente, por pelo menos duas razões fortes, que facilmente identifico ao olhar para o passado. Primeiro, pela clareza e objetividade com que tratar os assuntos, buscando a essência dos fatos para fundamentar suas análises. E segundo, pela convicção com que exercia o jornalismo. Enquanto profissional, era jornalista. E só. E isso lhe bastava. Tudo o mais que foi decorreu daí. Sua herança intelectual emerge do jornalismo, exercido não apaixonadamente, mas politicamente, no amplo sentido de que esta atividade profissional, assim como a dos políticos, molda a vida em sociedade.
Salvador, julho de 1998”.
Víviam viu alguma coisa nos olhos do pai, algo para ela inexplicável. E calou-se. E esperou. E então buscou quebrar o silêncio com uma pergunta que já conhecia a resposta, retórica:
— Pai, o senhor também já trabalhou no jornal “Folha de S. Paulo”, não foi?
— Trabalhei. Mas não em jornalismo. Trabalhei no departamento comercial da Sucursal de Salvador. Fui coordenador de propaganda para o Norte/Nordeste...
Víviam interrompendo o pai olhou novamente a carta, procurou data, não a encontrou e perguntou:
— A carta não tem a data. Quando foi que meu avô foi preso?
— No texto que você leu diz. Não diz?
— Não. Fala que o jornal Folha da Bahia foi empastelado.
— O jornal foi empastelado em 1964 está no texto. Pegue ai o livro de capa amarela “A Ostra Azul”. Aí, de seu lado.
— Toma, pai. — Víviam entrega ao pai o livro.
Zé Ricardo olha a página 5, nela a “Cronologia Básica”. Ele passa as vista fixando-se nas datas e lê:
“1964 — Comparece ao Comando da Sexta Região Militar para protestar contra a invasão de sua casa e da destruição de seu jornal, a Folha da Bahia. É preso e recolhido ao Quartel do Barbalho, em seguida ao 19BC”.
Zé Ricardo responde a dúvida da filha:
— Ari foi preso duas vezes, em 1964 e 1970. Em 64 eu só tinha cinco anos e não me lembro de quase nada, só que me mandaram para a casa de tia Gesilda, irmã de meu pai. Foi quando invadiram nossa casa pela primeira vez. Creio que a esquizofrenia de sua avó emergiu depois deste evento. Dalvinha foi perseguida pelo regime militar porque era do grupo educador de Anísio Teixeira. Antes de adoecer sua avó era muito prestigiada nos meios acadêmicos. Foi uma das fundadoras da “Escola Parque da Bahia”. Quando Ari foi preso e Dalvinha internada no sanatório. A carta que você leu, pelo texto, é de 1970, é de quando Ari foi detido pela segunda vez, eu era pré-adolescente, foi no ano de copa do mundo. Lembro-me que Ari, meses antes de ser preso por pensar e dar vazão aos seus ideais políticos, comprou um televisor colorido, o que tínhamos antes era P&B. A marca do novo modelo era “Sharp”, caixa de madeira, tela de vinte ou 25 polegadas. Ari levou dois anos para pagá-la. Ele queria a TV com imagens coloridas porque era fanático pela Seleção Brasileira. A copa de 70 foi uma festa. Toda nossa família junta. Quando a Seleção ganhou a copa do mundo saímos para uma churrascaria. Para mim foi um tempo feliz.
— Mas meu avô não foi preso naquela época?
— Foi. Depois da copa. Na casa de detenção. Se não me falha a memória fica no bairro de Santo Antonio. Contudo, Ari aproveitou o tempo para reescrever o livro: “Os dias do medo”. Eu tenho alguns exemplares aqui em casa, lhe dou um... Outra recordação nítida do ocorrido é que Maurício, amigo e sócio de seu avô no IC Shopping News, nos preveniu que o exército iria mandar revistar nossa casa em busca de livros sobre comunismo. Como ninguém tinha idéia do que procuravam tivemos que esconder todos os livros da biblioteca entre a laje e o telhado, centenas de livros. Meu pai tinha uma biblioteca colossal... O exercito realmente enviou os soldados para revistar nossa casa, todos com metralhadoras em punho, e nós, os de casa, na sala assistindo a nova TV. Eles não acharam nada... Leia outra carta...
— Certo, pai.
“Dalvinha,
Antes de tudo, parabéns! Embora a situação tenha melhorado, e muito, para mim, não poderei, hoje, abraçá-la e beijá-la, pessoalmente. Quero porém, que cada beijo de cada um dos meninos, de Guiga a Fred, seja um beijo meu. Os presentes de hoje não são todos os que você receberá. Faltam os meus. Dá-los-ei nos próximos dias, pessoalmente. Prossiga seu tratamento, de modo que sua recuperação total ocorra o mais rapidamente possível. Quanto a mim, estou trabalhando no meu romance (quase 280 páginas escritas — e penso que a coisa está saindo bem) e trabalhando, igualmente, num texto (livro de crônicas) do Raimundo Reis. É trabalho que me distrai enormemente. Começa de manhã e vai até a noite. . Somente tenho ligado a TV para ver os “tapes” de futebol. Em matéria de copa do mundo sou fanático. — Víviam olha o pai como a confirmar a informação e continua com a leitura. — Esqueci-me de mandar o primeiro volume do romance “Os Thibault”. Estou lembrando a Fred para levá-lo. O segundo volume ainda se encontra em mãos de Ademar e irá nos próximos dias. Amália tem sido, assim como Maria e a irmã dela, de dedicação extrema. É muito bacana esta tua irmã. Inclusive quando vem aqui e arruma tudo. A comida continua vindo do pessoal e parece que há um concurso para ver quem me manda os melhores pratos. A Gesilda, outro dia, mandou-me um peixe que vou te contar. A situação da Caixa Econômica foi resolvida e a cortina lá de casa estará pronta e colocada esta semana. O jardim já foi cortado e está uma beleza... a não ser aquelas roseiras. Aconselhe Amália a arrancar aquilo. Vamos sair para um belo jardim. E aqueles galhos secos das roseiras (que vigarista aquele sujeito de São Paulo) já me dão raiva. E beijos e mais beijos no seu e no meu dia. Dentro em pouco, com todos os meninos reunidos, vamos comemorar tanto seu aniversário quanto o meu em conjunto. Para que o Zé dê um dos seus shows.
Beijos imensos do Ari.”
— Leia a outra carta, filha.
— Essa ta meio apagada...
— Leia.
— A primeira parte desta está apagada, mas vou lê-la de onde der? Certo?
— Leia. “ ... Dalvinha, eis aqui: encontro-me, de novo, a madrugar, debruçado sobre o livro. Todos dormem. Um dos companheiros de quarto, o (— aqui está apagado—) ...não se limita a ressonar. Ronca como um porco. É, no entanto, segundo indica seu comportamento, uma boa alma. Creio que se se visse roncando, como agora, provavelmente ficaria envergonhado. E, no entanto, não tem culpa. Acabei faz pouco, o segundo volume de “Os Thibault”. Abri o terceiro. É leitura apaixonante. Entristece saber que poucos o leram, pouquíssimos podem compreendê-lo e valorizá-lo. Já o conhecia, faz 10 ou 12 anos. Agora de novo a lê-lo, reencontro antiga alegria. Revejo Antoine, Oscar Thibault, Gise, Madame Foutavice, Daniel, dezenas de outros personagens, mas sobretudo, Jacques, de muita grandeza. De repente, Dalva, agora, ao entender Jacques, ao reencontrá-lo, quase a minha frente, saltando das páginas do livro, como me sinto pequeno, estúpido, mesquinho! quanto me comove sua tragédia, um jovem bom no mundo dos lobos, consumindo-se na construção de sonhos, desentendido do seu tempo, incapaz de medir a eficácia de sua esperança. Repetindo Quixote. No entanto, é precisamente aí que há grandeza autentica. Se eu, de fato, soubesse escrever o suficiente, se, de fato, fosse um engenheiro de almas humanas meu grande desejo seria o de ressuscitar Jacques Thibault, pô-lo, inteiro, integro, incontaminado, na nossa vida de agora, fazê-lo viver nossas alegrias e nossa angústia, agora que começamos a escrever os ... ( — esta palavra também está ilegível, pai. —) — Deve ser: “os primeiros dias...” continue —...dias da pré-história da humanidade. Eis o que tenho ganas de fazer: um Jacques atirado no nosso tempo, chamando-se Tonho ou João, Trindade ou Astrolábio, envolvidos nas arquiteturas corrompidas, para vê-los enfrentá-los e destruí-los. Sinto, porém, Dalva, desgraçadamente, que me faltam forças, sinto que não vivi o bastante, bastante não sofri e não sorri, para execução de projeto tão ambicioso. Suspeito, no entanto, que se viver mais, que se estudar mais, terminarei pelo menos um capítulo do meu Jacques, com aquela dimensão de grandeza, de sonho puro. Já não há mais tempo, nem necessidade, para que, mediante a obra de arte, se exponha o mundo, este mundo tal como ele é, analisado na sua essência e nos seus fenômenos. A simples exposição, uma a uma, já fica sendo um elemento de tédio, a alguns arrastando para a inconsequência, noutros produzindo...
— Só vai até aqui e para...
— Tudo bem, filha... Essa carta ai creio ter sido na primeira detenção... Mesmo nesse pequeno trecho dá para notar a preocupação de Ari em estudar, de não se dar como pronto... Não adianta nada saber como dizer, se não souber o que dizer. É essa a diferença dos meus textos para os de Ari... Tem um conto dele que ele trata do assunto medo. Quer lê-lo.
— Depois. Vou ler outra carta.
— Leia.
“Querida Dalva, Queridos Filhos.
Imagino-os a todos. A cada momento — e são longos, sofridos momentos — posso vê-los e ouvi-los, porque estas paredes que me encerram são incapazes de conter minha imaginação. Estou sempre com vocês. Sobretudo à noite. Vejo e sinto cada sorriso de Fred, Jorge, Vanja, José Ricardo, Antonio Guilherme. O que me magoa é não ter a convicção de que elas possam, tão crianças ainda, retribuir o adeuses que lhes dou. Mas sei, com certeza absoluta, que você, Dalvinha, há de sentir, cada noite, cada dia, essa presença de quem está tão longe e ao mesmo tempo, tão perto. Somente depois desta convicção, quando ela me imprime na consciência e no coração, é que, afinal, consigo dormir — e é um sono longo, tranquilo, repousante, um sono de prazer realizado. Eis porque, pela manhã, quando desperto, ao ver, em torno, faces que estão tristes, e, por vezes, faces em que identifico, sem dificuldades, marcas de um desespero, consigo sorrir, insisto em sorrir, e de tal forma, e com tal força que ao cabo de alguns minutos, todos sorriem também, reencontrando-se. São longos os momentos, já lhes disse. Não os perco. Aproveito-os, minuto a minuto, promovendo, com circunstância metódica, uma analise, um exame, ao passado que me foi possível construir. Busco os erros, as insuficiências — e encontro-os, não poucas insuficiências, não poucos erros. Não me perdôo, pro exemplo, o desconhecimento de línguas essenciais para meu estudo e meu trabalho. Não saber inglês, por exemplo. Nada entender de alemão. Conhecer francês pela rama. Saber tão pouco de matemática. Nada disso me perdôo. Lamento, ainda, não ter estudado, com método, ciências tão essenciais como Sociologia e História. Não creiam, contudo, que essa convicção de insuficiência cultural possa produzir apenas tristeza. Dela retiro estranha e poderosa força: a de recuperar o atraso. Rapidamente. Estou entregue, agora, ao estudo intensivo do inglês. As dificuldades, para um ignorante, como sou, são consideráveis. Na pronuncia, principalmente, sou uma negação. Dias e dias e ainda não consegui pronunciar , corretamente, como a pronuncia meu professor, o Frei Valesiano, a palavra also. Flexiono mal. A língua não se disciplina. Erro e repito. Afora isso, porém, vou andando e Frei Valesiano é estimulante. Prometi-lhe, por isso mesmo, logo que me veja em liberdade, uma feijoada das nossas, a rigor. Quero dizer: uma feijoada que se inicie com aperitivos e tira-gosto, seguindo-se o arroz solto, a salada variada, o molho picante, a carne de porco bem tostada, e ele sua majestade, o feijão, de véspera, bem condimentado. Para auxiliá-lo, com a referencia devida, um vinho tinto, aos 18 graus, encorpado, de memória permanente. Escrevo isto e o frei se baba de gozo. Eu também! Perdoem a pilhéria, que pilhéria não é. É, em verdade, evocação, mais do que isso, é desejo, imenso e poderoso, de vê-los, senti-los e abraçá-los, um a um, e todos, ao mesmo tempo. abraçá-los não só a vocês, mas a todos, aos que, inclusive, não conheço, nunca vi. Minha condição de jornalista, de escritor em projeto, leva-me a estes transbordamentos. Creio que me negaria se tentasse aprisioná-los. Disse-lhe uma vez, Dalva, repito-o agora, que sou todo coração, e, por isso, como poeta, “onde se vê louca anatomia”. Falava-lhe da convicção de que sei pouco e sei desordenadamente o que foi possível aprender. Quero, a viva força, recuperar o tempo perdido. Vou fazê-lo. Comecei a fazê-lo. Continuarei. Por mim, por vocês, por todos. Quero contribuir com algo sério para meu país, minha Pátria, meu Povo, e ninguém senão a morte me impedirá. Se não conseguir, terei a alegria do esforço desenvolvido nessa direção. Mas, certamente, naquele passado consternado nem tudo foi erro, nem tudo foi insuficiência. No meu passado estão vocês — e sinto orgulho, contentamento, tranquilo orgulho, sem ostentação, de tê-los ao meu lado. Estão, no meu passado, amigos que fiz em circunstâncias de sucessos, de êxitos, e, também, aqueles que ao meu lado estiveram, e estão, nos momentos de adversidades. Que não foram poucos, e, necessariamente, se repetirão no futuro. No meu passado está tudo quanto escrevi. Também disso me orgulho. Convenço-me, agora mais do que antes, que nunca dobrei a espinha aos poderosos, nem a dobrarei. Como jornalista e como projeto de escritor jamais construí inverdades, sabendo-as inverdades. Nunca me aproveitei da condição, honrosa para poucos, aviltada por numerosos, para pisar ninguém, prejudicar quem quer que fosse, trair os interesses do nosso Povo, a troco de vantagens, mínima ou máxima que pudesse ter sido. Disso a ninguém peço testemunho, senão a vocês. É quanto me basta. Graças a isto meu sono é tranqüilo, meu riso é fácil, posso olhar-me no espelho sem surpreender-me desesperado ou vencido. Desejaria, agora, poder abraçá-la e dar-lhe, Dalva, o que lhe devo, em afeto e em carinho. Terei a oportunidade para isto. Em breve. Porque, é certo, em breve nos reuniremos todos, na mesma mesa, sob o mesmo teto. Julguei poder vê-la, hoje. É-me impossível. Você imaginará os motivos dessa impossibilidade e o que para mim, ela significa. Beijo-a com ternura. Aos garotos também, um por um. A todos peço que estudem. Brinquem um tempo, estudem outro. O máximo que possam. Especialmente Fred e Jó que devem ajudar em casa,
Até Breve,
Ari.
— Legal, pai... Vou beber água. Quer alguma coisa da cozinha?
— Traga-me um conhaquezinho com duas pedras de gelo e uma latinha de cerveja.
— Já vai começar a beber?
— Não me encha o saco, filhota.
Víviam sai. Zé Ricardo observa a chuva que aos poucos diminuía sua intensidade. Víviam retorna trazendo o conhaque e a cerveja em lata pedidos. Enquanto Zé Ricardo começou a bebericar o conhaque intercalando goles de cerveja. A filha reapanhou as cartas e perguntou.
— Pai. Que estória e essa de você dar shows.
— Quando criança eu imitava Toni Tornado cantando e dançando a música “na BR3”... Ridículo.
— Foi bom eu saber...
— Todo mundo já pagou mico. Além do mais, eu ainda era pré-adolescente. — Leia outra carta.
— Pai! Como era meu avô como pessoa?
— Ari era um jornalista de esquerda numa época que ser de esquerda dava cadeia, até morte. Dá para você ver, pelo fato, o quanto Ari era corajoso, honesto, digno de respeito e respeitado pelos amigos e até por inimigos políticos. Talvez porque ele não combatia as pessoas, mas combatia ferreamente ideias e as atitudes quando delas resultasse desvios éticos ou prejuízo a população como um todo ou a parte mais sensível dela. Preocupava mais a Ari os dramas sociais que qualquer drama pessoal por ele vivido... Além de ser um homem bom, de caráter, Ari era exigente consigo próprio, portanto, também com os que amava. E nunca o vi se acovardar. Nunca o vi se negar a um amigo... Pegue aí um recorte escrito por João Ubaldo Ribeiro, é uma crônica intitulada “Falta de assunto”.
Viviam vira e revira dezenas de recortes referindo-se ao avô, e, finalmente, encontra o recorte solicitado. A folha de papel-jornal, amarelada, revela em parte o tempo que se manteve guardada.
— É este aqui, pai?
Víviam mostra, ao pai, o recorte do jornal Folha de S. Paulo.
— É sim. Leia-o.
Víviam leu em silêncio até a parte que imaginou interessar ao pai.
— Aqui! Conta João Ubaldo:
“ Entrei para o jornal, onde um de meus mestres foi o grande Ariovaldo Matos, que até hoje me traz lágrimas aos olhos, quando lembro dele. Não era nenhum anjinho, Ariovaldo, era só um homem bom e um profissional do maior valor, a quem sempre deverei muito do que sei e me sustenta...”
— Não. Não é essa parte não. Leia a parte onde Ari pede que ele escreva uma crônica.
— Achei! Vou lê-la:
“Um belo dia, Ari, como era conhecido Ariovaldo, me chamou a mesa dele — Estou com um buraco aqui — disse ele — Não tenho como encher esse buraco, porque não acontece nada aqui. Escreva aí uma crônica. Lauda e meia, 60 batidas.
— O quê?
— Cale a boca, sente o rabo ali e escreva uma crônica. Lauda e meia, 60 batidas.
— Ari...
— Cala a boca, sente o rabo ali e escreva uma crônica, lauda e meia, 60 batidas.
— Escrever uma crônica sobre o quê?
— Problema seu. Eu estou lhe dizendo que sente o rabo ali e escreva uma crônica, lauda e meia, 60 batidas. A página fecha daqui a duas horas. Sente o rabo ali, não encha meu saco e escreva uma crônica...”
— Aí o João escreveu a crônica... É isto?
— Entendeu, filha. Ari tinha competência de líder e sabia usá-la. Ele sabia que o João Ubaldo tinha capacidade para cumprir o determinado, então usou a autoridade do cargo, e, além disso, havia nele um raro poder de persuasão. Por vezes, ele explodia à-toa, era um homem “de pavio curto” e me dava um bocado de esporro.
Quando nervoso Ari era impaciente com todos, menos com sua Avó. E você não tem idéia do quanto é difícil manter a paciência com sua avó. A doença de sua avó pautou grande parte da vida de Ari e está pautando a minha. Só depois que seu avô morreu e que eu assumi a responsabilidade de assisti-la é que eu vim a entender o quanto era complexo cuidá-la. Ele sofria pacas, e sofria calado. Ari não dividia sofrimentos. Mas vamos mudar o assunto que a vida de Ari não foi só sofrimento. Ari, apesar de tudo, era um homem alegre. Ari não apenas ria. Gargalhava. E quando gargalhava contagiava a quem estivesse ao redor. Era aquela gargalhada solta, gostosa. Ás vezes, para ouvir suas histórias, muitas delas fantasiosas, eu comprava cervejas para mim e conhaque para ele, — o de gosto era “Fundador” com gelo e água mineral, mas contentava-se com “Domecq” e água da Embasa. — Ele dizia: “O cloro dá peso, dá corpo e dá sabor a água”. Eu sabia que era cascata. Ele não queria era gastar dinheiro com a água mineral, mas eu fingia acreditar em suas tiradas. Lembro que, com meu primeiro salário, eu comprei uma dessas mesas de Jardim, de madeira, branca. Ari adorava o jardim, o jardim fora projetado por Burle Marx quando ele esteve em Salvador para urbanizar o bairro Patamares. No jardim de meu pai havia um quadrado de cimento de 3m x 3m, ou seja, 9 metros quadrados para a mesa e as cadeiras. Era onde Ari recebia os amigos. Era ali que conversávamos. Eu costumava comprar pedaços de carne —alcatra — e lá, no jardim, havia um buraco no chão que me servia de churrasqueira. Eu jogava carvão e acendia. Esperava queimar o carvão até que ficasse branquinho, coberto por cinzas. Isso impedia que o fogo subisse devido aos respingos da gordura. Então, transpassava a carne no espeto, temperava com sal grosso e ficava lá, bebendo, comendo e ouvindo as histórias que seu Avô contava. Ele me chamava troglodita porque eu comia a carne a lascas retiradas do espeto, ainda na churrasqueira, em filetes com uma faca amolada e comia com as mãos, sem prato ou talher. Arrancava as lascas nos dentes. Na carne ele não tocava, preferia queijo cortado e presunto em cubinhos e bebia o conhaque com a água gelada. Algumas das histórias que Ari contava, eu ainda me lembro...
— Pai. Eu já lhe disse que seus olhos brilham e seu semblante muda quando o senhor fala de meu avô.
— Normal... Tem mais alguma carta, estou curioso.
— Tem. Quer que leia?
— Quero. Leia.
“Dalvinha,
ai vão, para você, revistas e estas bolachas. As notícias que tenho recebido a seu respeito indicam que sua recuperação se fará o mais rápido possível e considero de extrema importância que desde agora você mesma se empenhe em planejar, já em casa, um tipo de vida e uma série de atividades práticas que a ajudem a uma cura definitiva. Minha libertação é, agora, questão de poucos dias. De modo que mais cedo do que você possa pensar estarei aí, visitando-a pessoalmente, e não através de bilhetes, que se dizem alguma coisa do que desejo você ouça, não dizem o quanto todos nós, e os meninos, necessitamos de você em casa, em plena atividade. Zé e Guiga foram com Amália para Maragogipe, para as festas de agosto. Voltarão amanhã, segunda-feira. Nestas noites tenho dormido em casa e os meninos se estão comportando excelentemente. A Maria e sua irmã têm sido de uma compreensão magníficas. Beijos, muitos, para você, inesquecível que é para todos nos, para mim em particular. Logo que as visitas pessoais sejam possíveis, e sê-lo-ão em breve, os garotos estarão aí, aos montes — e eu com eles.
beijos do Ari.”
Agora só tem mais uma. Vou lê-la logo:
“Salvador, Bahia, 23 de maio de 1975
Dalva, amor, tudo bem em casa. Você só foi internada porque ocorreu uma infecção nos brônquios e só aí, no sanatório, poderia haver um tratamento adequado. Vai, agora, esta camisola. Outras irão, ainda hoje. Mande dizer o que você quer. Domingo, com autorização do Dr. Ediltom, iremos aí. Peço, mostre-se bem aos meninos. Eles querem sua volta a mais rápida. Atenda às prescrições do seu médico. Não se preocupe com dinheiro. Já recebi o que me deviam. É necessário que você diga claramente o que precisa, quanto a roupas, quanto a dinheiro para gastos aí, tudo. Você está sob regime de enfermagem especial. Em conseqüência, exija o que quiser. Tudo está pago, antecipadamente. Dr. Edilton já autorizou o máximo de tratamento especial para você. Ele explicou que você ficou muito tempo sem avaliação sobre ingestão de drogas. O primeiro estágio é curar você clinicamente, sem preocupações de ordem psiquiátricas. Resolvida a infecção dos brônquios, haverá exames sobre efeitos da antiga medicação. Há técnicas novas que eu desconhecia. Todos os da família — e nós temos uma grande família — estamos em condições de ajudá-la, mas é imperioso que você se ajude. Zé pede para dizer que vai parar de fumar. Jó já deixou. Vanja, idem. Eu sou um caco velho, mas se você quiser enfrento a luta. Deixarei de fumar. De tudo o mais importante é você. Guiga manda beijos. Fred está aqui, e beijos. Jó, beijos. Zé, beijos, beijos que não acabam mais! E Arnoudo, Ivonildes, Gesilda, milhões! Você sufocaria de tantos beijos. Eu estou bem. Trabalhando mas sem aquela coisa de ficar sem dormir. Vou, hoje, a uma homenagem ao Godofredo Filho e cedo estarei em casa, para liberar Zé e Vanja. Guiga insiste em mandar um beijão. Eu também. Ari.
— Quem são Arnoudo, Ivonildes e Gesilda?
— Meus tios, irmãos de Ari.
— Eles também moravam lá.
— Não. Mas nos visitavam de vez em quando. Foi nessa época, em 75, que meu pai se deixou levar pela doença de Dalvinha e começou a trabalhar de casa. Acho que foi seu avô quem trouxe o “home office” pro Brasil.
— Como assim, pai?
— Ari trabalhava num escritório no edifício Martins Catarino, no centro uma transversal da avenida Sete de Setembro. Porém, após essa tentativa de suicídio de sua avó...
— Minha avó tentou suicídio? Ele não falou em suicídio.
— Tentou, mas, para mim, a intenção era apenas fingir o suicídio para manipular Ari. Ela faz isso constantemente comigo. Quando eu saio de casa, ela apronta. Bate na empregada, derrama leite em minha cama. Joga as coisas pela janela, Até fingir beber água-sanitária ela já fingiu. É a forma que ela faz para manter-me cativo. Fazia o mesmo com seu avô. Nesse caso específico, Ari havia saído com amigos para almoçar, ninguém sabe como ela conseguiu abrir a gaveta de remédios que estava trancada e tomou alguns dos comprimidos. Nesse dia estava em casa Dona Maria, eu e Vanja. Quando Dona Maria entrou no quarto para limpa-lo, Dalvinha estava espumando pela boca. Ela gritou, eu que estava na sala vi Vanja correr para o quarto, corri atrás e Vanja estava desesperada. Maria tentava limpar uma gosma espumosa que escorria da boca de minha mãe. De repente Dalvinha engasgou. A gosma saía tanto da boca quanto do nariz e fui obrigado a chupar a gosma, e a cada chupada na baba eu vomitava junto. Vanja de tão nervosa não conseguia fazer nada, só chorava. Então, correu para a rua e ficou gritando por socorro. Gritou em vão. Eu busquei racionalizar, manter a calma. Por instinto virei Dalvinha de lado e notei que ela voltara a respirar apesar de ainda espumar pela boca. Deixei-a com Maria, corri para o telefone e liguei para Dr. Ricardo Cruz, o psiquiatra dela. Ele chegou rápido, quase ao mesmo tempo de Ari que retornara, por acaso, do restaurante. Naquela época não havia telefonia celular. Dr Ricardo chegou com uma ambulância. Minha mãe foi internada e meu pai sentenciou-se a prisão domiciliar. Enquanto minha mãe se recuperava na Clínica Psiquiatra, Ari me levou a loja de carros usados e comprou uma Brasília, seminova, para mim e me contratou como continuo da AGATE, empresa de assessoria de imprensa, que editava também o IC Shopping News. Nessa época eu tinha aproximadamente uns 15 a 16 anos.
— E já se podia dirigir aos 16 anos?
— Poder, não podia. Mas não havia outro jeito. Fred, se não me engano, já havia casado. Jorge era gerente do jornal O Globo, Guiga tinha uns 12 anos. Tinha que ser eu. Daí, Ari pediu ao irmão de Waltinho, Gilsom, para me ensinar a dirigir, Gilsom era motorista profissional. Aprendi a dirigir. Passei a estudar de manhã e trabalhava de motorista e Office boy para meu pai à tarde.
— Para mim o senhor não compra um carro. Vai pai, compra um carro mim e eu viro sua motorista...
— Com que dinheiro? Quando você fizer 18, tirar a carteira de motorista e se eu tiver a grana sobrando, eu compro. Voltando ao assunto: Sim. Eu não sabia que Dalvinha havia tentado suicídio. Eu acho que Ari escondeu essa informação da família para proteger sua avó. Todos imaginaram ter sido culpa do cigarro que ocasionara a embolia pulmonar, porque sua avó fumava cinco maços de cigarro por dia. Depois deste evento Jó e Vanja pararam de fumar. Eu parei por um tempo mas voltei meses depois... Vamos mudar de assunto. Do eu que estava falando?
— O senhor estava falando das histórias que meu avo contava.
— É verdade. Lembro de uma? — Contava, Ari, que tinha por amigo, um fazendeiro rico. Não. Ari diria "milionário" ou "muitíssimo rico", algo grande, superlativo, plural. Para Ari tudo era da maior importância, até os detalhes eram ricos...
— Conta à história, pai. — Interfere Víviam na viagem saudosista paterna. ...
— Era um amigo de seu avô, que tinha por mania de que galinha tinha que voar. Esse amigo, milionário, catava as coitadinhas, colocava as galinhas em um teco-teco e sobrevoando a casa sede da fazenda arremessava as aves da aeronave gritando: voa, filha-da-puta, voa que Deus te deu asas para voar... As galinhas batiam no chão e, provavelmente, morriam.
— Ah! Pai. É cascata, não é?
— Não. Só os pobres de espírito mentem. Seu avô não mentia. Às vezes fantasiava as histórias. E se você, filha, não sabe a diferença, lastimo. Porém, quando conto as mesmas histórias, elas perdem a graça.
— Pai. Seus olhos estão brilhando, como nas chamas dos olhos de Tancredo, de o desembestado...
Sempre tive uma ligação muito forte com meu pai. Mesmo quando fui morar com sua mãe no Maranhão, escrevia periodicamente para meu pai. Ari retornava as minhas cartas com as devidas correções ortográficas. Lembro-me que certa vez, próximo do nascimento de sua irmã, Vanessa, escrevi para Ari suplicando por grana. Apavorava-me a condição financeira em que vivia, já que a imobiliária onda trabalhava falira sem me pagar as comissões devidas. Pedi dinheiro para Ari, Ele enviou-me o que pode mandar e, junto a minha carta revisada, anexo, e muito mais importante, escrito à mão, um bilhete dando-me o apoio e a confiança que ele nutria por mim. Disse-me, sem meias palavras, que uma vez superando certos posicionamentos de pequeno-burguês que eu seria capaz de sustentar não duas, mas duzentas filhas. Parei de me lamentar, joguei fora o orgulho, peguei o fusquinha que pretendia vender, e fui para porta do supermercado Lusitana, e fazendo carreto para as madames, paguei todas as dívidas e sua irmã pode nascer em hospital particular, cercada de todos os cuidados. Descobri, ali, que a vida só é dura para os moles, os covardes.
— Você deve ter sofrido muito com a morte de meu avô. Não foi, pai?
— Seu avô não morreu. Ele está aqui entre nós.
— Não sabia que o senhor acreditava em vida após a morte.
—E não acredito. É que ele não morreu, filha. Ele está vivo em mim, agora, acredito, estará vivo em você, compreende? E quando você tiver um filho falará com ele sobre seu pai e seu avô. Essa é uma estrada sem fim.
— Entendo o que quer dizer, pai. Mas eu falei da morte física.
— Sim. Claro. Foi dolorosa a perda, muito dolorosa, porque ele padeceu por um bom tempo. Foi numa sexta-feira, tenho certeza. Ari me telefonou, pedindo para levá-lo a uma clinica onde apanharia resultado de exames e teria consulta na mesma clínica. Lembro que era sexta-feira, porque as sextas-feiras eu encerrava expediente mais cedo. — Impossível encontrar em Salvador algum executivo após as 5 horas da tarde de uma sexta-feira.— Sim. Como dizia, filha. Fomos a clinica. O seu avô não dirigia devido à labirintite. No retorno, Ari me fez parar em um restaurante que ele adorava, ficava na orla, pouco antes do Clube Português. Não me recordo o nome, mas a culinária era alemã. Tinha todos os tipos de comidas típicas. Pedimos um prato surtido de frios. Papai bebeu conhaque, eu, lembro-me como se fosse hoje, bebi, em canecos gigantescos, chopes. Ali, Ari revelou que o resultado do exame dera positivo. Fora diagnosticado um câncer no fígado em estágio avançado. Abismei-me com a tranquilidade, a frieza ante a notícia funesta. Agia como se nada estivesse acontecendo. Pediu-me para não dramatizar, pediu silêncio para com minha mãe e ajuda no trato com ela. Como meu pai sempre bebeu muito, pensei em cirrose. Ele nunca se deu ao trabalho de explicar a ninguém qual era a doença. Lá mesmo, no restaurante, ele me pediu para que voltasse a morar com ele e Dalvinha a fim de ajudá-lo no que fosse possível. Na época eumorava sozinho no condomínio João Durval, trabalhava na Gazeta Mercantil. A preocupação principal de Ari era com os cuidados necessários com minha mãe. Daí até a morte dele foi duríssimo. Foram quatro anos difíceis. Ele fez questão de frisar, que não aceitaria cenas, lágrimas ou conselhos. Acontecesse de não aguentar a barra, poderia declinar a qualquer hora, sem mágoas, disse-me, friamente. Foi difícil vê-lo sofrer, sem queixas, preso em seus silêncios. Não havia nada que se pudesse fazer, era irremediável a morte. Ari não queria suprir falsas ilusões e não aceitou se sujeitar a quimioterapia, radioterapia ou qualquer outra medida que o incomodasse. É dolente enfrentar o inevitável. Eu combatia a morte como um escudeiro sem armas. Não foi uma época fácil para mim. A mais, não compreendia o motivo pelo qual meu pai se negara a tratamentos. Ele, próximo a morte, bebia coisa de um litro, um litro e meio de conhaque por noite, com água de torneira, gelada. Não era fácil vê-lo sem tratamento algum por escolha própria, esperando e esperando a morte. Doía-me, também, ter que cumprir a função de afastar amigos e parentes mais emotivos. Já que os apelos emocionados deles, só aporrinhava e dificultava Ari na escolha que assumira. Ari era avesso a consolos, dramas, opiniões infundadas e falsas esperanças. Iria morrer e pronto. Sofre quem escolher sofrer. Quando retado, perdia a paciência, alegava dramatizações piegas e expulsava de casa qualquer pessoa. Sem cerimônia ou tato. Cuidei dele e de minha mãe, dela ainda cuido como você sabe. Para que eu não fraquejasse, mantive disposição férrea para trabalhar, namorar, sair, trepar e rir. A morte era dele, e só dele, fazia questão de salientar. Nossas farras no jardim continuavam. Impróprio o assunto doença. Neste período, só tivemos uma única desavença. Eu dormia e fui acordado por Ari. Ele estava assustado, e era raro vê-lo assim. "Corre Zé, busca sua mãe". Levantei-me sobressaltado, corri para rua, minha mãe caminhava longe, vestia apenas um calçolão de algodão. Corri até ela, trouxe-a de volta para casa segurando-a pelo braço, fui rude nas maneiras. Ari seguiu-me lento, abatido da doença. Ao chegar, abraçou-a carinhosamente, e, com calma, manso, levou-a de volta com toda paciência do mundo. Eu estava com raiva, sentia vergonha, imaginava proposital a atitude visando atenções. Em casa gritei com ela, recriminei a maneira que ela achou para chamar atenção. Ari atingiu meu rosto com um tapa. Gritou, exigiu respeito, compreensão. Eu sai de casa destrambelhado, com raiva, jurei abandoná-los. Só retornei a noitinha, bêbado, disposto a ir embora. Ao chegar, Ari esperava-me na mesa do jardim. Havia mandado comprar cervejas, carne, carvão. Não sei se ele, ou alguém a seu mando acendera a churrasqueira. Vi a carne no espeto, afastada da brasa, esperando-me. Ari me chamou, pediu que sentasse, queria desculpar-se. Colocara-se em meu lugar, sentiu meus sentimentos, e assim, pode explicar-me os dele. Não me lembro das palavras, mas me lembro que ele me fez entender, que não havia motivos para vergonhas, era da doença dela. Cabia-me socorrê-la, não julgá-la. Disse algo assim, como: "pare de tentar imaginar o que as pessoas imaginam sobre sua mãe. As pessoas que a condenarem, são estúpidas, e elas têm esse direito, mas você não. Você sabe a boa alma que sua mãe é. Sabe o quanto sua mãe já sofreu. Você é filho, você sabe. Não se envergonhe jamais de sua mãe, nunca. Isso eu não vou admitir. Se quiser ir embora, vá. Mas, não use sua mãe como desculpa. Isso é hipocrisia".
— E você foi embora.
— Não. Não fui. Era meu destino, ou melhor, ainda é.
— Minha avó?
— Prometi a Ari que tomaria conta dela. Poucas horas antes de ele morrer. Prometi, também, que não a deixaria ser internada, salvo, como último recurso. Dalvinha, mesmo doente, é uma guerreira. Já venceu dois cânceres no seio. Algumas infecções graves. Ela é dura de roer. Enlouquece qualquer um... É foda cuidar dela! Não consigo entender como Ari suportou tanta aporrinhação sem endoidecer também por tantos anos.
— Do mesmo jeito que você, pai. Eu já estou doido há muito tempo. Já acho que adivinho o que ela vai pensar antes dela pensar... Isso é loucura.
— Hoje ela está quietinha.
— Porque passou a noite toda atentando. Às 5 horas da manhã ela já estava telefonando para Guiga. As sete a caixa de mensagem do telefone dele já devia estar cheia. Temos gastos astronômicos com a conta de telefone.
— Meus tios não ajudam você.
— Quando peço, eles ajudam. Mas, eles têm, também, os problemas deles, a família deles. Não podem ficar a toda hora resolvendo os meus pepinos...
— Meu avô, pai. Você contava da briga...
—Sim, então... Ficou tudo bem. Continuei morando com ele, ajudando-o no possível, mimando-o. Seu avô comia como pinto, almoçava em pires. Eu revirava a cidade para encontrar ostras, quando encontrava, preparava um molho que inventei para acompanhá-lo no comer as ostras. Ele gostava de ostras cruas, gotas de limão e triz de sal. Arrancava-se a tampa, punha-as sobre gelo picado. Para mim, eu preparava no liquidificador mistura de azeite-doce, mostarda, palmito em conserva, duas pimentas-de-cheiro com um tiquinho de vinagre e requeijão ralado. Batia bem batido, punha a pasta numa xícara de cafezinho. Com uma colherinha, jogava sobre o miolo da ostra e comia. Ari, acredito, não as mastigavas, apenas engolia. Outro mimo era os frios, que eu comprava no restaurante do alemão. Eventualmente, pedia-me uma moqueca de peixe ao molho de camarão. Prato, na época, feito, somente a pedido. Creio que Ari, dava gorjetas gordas ao garçom. Era prato fora do cardápio. Ao entrar no “Qui-moqueca” o garçom já sabia o pedido: Ficava feliz ao vê-lo saborear as moquecas de peixe ao molho de camarão. Alguns amigos, como Barbosa Romeu, Guido Guerra, Dr. Brenha Chaves, José Gorender, Maurício Nayberg, Ricardo Cruz e outros,. Apareciam para visitá-lo, geralmente acompanhados de bons vinhos e bons conhaques. Ari adorava. Outra coisa que me impressionava em Ari era sua perseverança no que tangia ao trabalho. Ele trabalhou todas às noites ininterruptamente até a noite de sua morte. Ele morreu no dia que concluiu a versão definitiva do livro “Anjos Caiados”. Nos últimos dias, Ari estava bastante debilitado fisicamente. Eu tinha que ampará-lo até na hora de ir ao banheiro. Mesmo assim, ele mantinha intacta a dignidade, a lucidez, o brio. Para banhar-se, era necessário um tamborete. A barba de Ari só era feita quando minha tia Amália, imã de Dalvinha, aparecia. Eita mulher retada é Amália! Sua tia-avó. —Quando tia Amália aparecia botava a casa em ordem. Pegava as empregadas e faxinava tudo. Depois, ia lavar os pés inchados, muitíssimo inchados, de Ari. Cortava as unhas, os cabelos e fazia a barba dele. Amália chegava sorrindo, contando anedotas apimentadas, desbocadas. Ari ria, ficava feliz. Amália era como filha para ele. Ainda hoje, quando seu pai se vê em apuros. Amália vem em socorro, tanto ela quanto Jorge, o marido. Almas iluminadas...
— Fiquei na casa dela um bom tempo, eu e Vanessa,você lembra, pai?
— Claro! filha.
— Ela é dez...
— Sim. Como eu contava. No dia da morte, ou melhor, na noite da morte. Coube-me negar-lhe o último desejo. Ari queria morrer em casa. Aprendi com ele a frieza para impedi-lo. O jardim da casa estava repleto de amigos e parentes. Lembro-me que o levei até o banheiro para que urinasse, ele urinou sangue. Levei-o então de volta ao somiê, onde costumava dormir, e deitei-o. Corri para fora, pedi ajuda a meu tio Renato. Um excelente médico e uma pessoa maravilhosa. Meu tio examinou Ari, e de seus olhos escorreram lágrima. Não necessitava palavras. Mandei chamar uma ambulância. Meu pai disse-me que não iria para hospital algum. Obriguei-o a ir. Não poderia deixar minha mãe, desequilibrada, assistir a morte dele. A ambulância chegou, mais uma vez Ari recusou-se. Eu friamente disse: Não posso deixar que minha mãe presencie sua morte. Ele acenou-me afirmativamente batendo a cabeça. Pediu que o levasse ao gabinete, levei-o, ele acendeu um cigarro, tomou outra dose de conhaque, pediu-me que chamasse Guido Guerra e saísse. Ele conversou a sós com Guido. Eu estava emocionalmente em frangalhos. Se existisse um modo, morreria em seu lugar.
— Pai, o Sr. está chorando?
— Entrei na ambulância sem deixar escorrer única lágrima, tentei sorri, assim como ele ensinara. Deitado na maca, Ari olhou-me nos olhos e falou palavra de consolo. Pegou minha mão, deu um leve aperto. Mandou buscar o travesseiro de marcela e a carteira de cigarros. Fui correndo, não queria crer, que a morte mostrava-se a minha frente e pouco esperaria. Ao voltar para ambulância, coloquei o travesseiro sob sua cabeça, acendi um cigarro, o último da carteira e entreguei-lhe. Ele falou algo sobre minha coragem, fez-me prometer cuidar de sua avó. Eu continuava negando a verdade. Resistia acreditando em milagres, fingia sorriso enquanto orava. A ambulância oscilava, o que lhe provocava dores, Ari contraia os lábios, mas nenhum gemido, nenhuma lágrima. A sirene cantou até a chegada na clinica. Ari foi levado ao quarto, enquanto eu assinava a papelada burocrática. Meia hora depois, fui estar com ele. Ele pediu para que eu não deixasse levá-lo para UTI. Impedi, áspero, o médico desta ação. Uma enfermeira tentou lhe pôr uma sonda para que ele pudesse urinar, ele recusou. Ela saiu resmungando. Ele pediu-me para levá-lo ao banheiro. Enlacei-o para sentá-lo no leito, seu corpo contraiu-se violentamente, Ari abraçou-me forte. Dos dentes travados, espirrava cuspe. Gritei pelo médico que me arrancou do último abraço num puxão. Ari estava morto. Os médicos aplicavam-lhe injeções no coração, davam-lhe choques. Mas a morte já o havia derrotado.
— Pai, para. Pai, por favor! Seus olhos. O senhor está chorando. Deixe-me terminar de contar... — O médico falou algo ao qual não dei atenção, provavelmente desculpava-se por não ser Deus. Por não tê-lo mantido com vida. Em mim, veio um grande vazio, o cigarro que acabara na ambulância fez-me falta. Necessitava muito fumar. Amanhecia quando saí da clinica para informar o óbito. Na rua, um grupo de adolescentes passava a caminho da escola, casais brincavam como se nada tivesse acontecido. Um deles sorriu. Nunca pensei que um sorriso magoasse tanto a alguém. A vida continuava. Poucos minutos após a morte de seu avô, atendendo a meu apelo, chegou Iracema, filha de Maurício Naiberg. Tentei serrar-lhe um cigarro. Ela não os tinha. Meus pensamentos vagaram, vieram-me a cabeça às brigas que tivera com as namoradas por ciúmes ou por motivos tolos. Todo meu passado pareceu idiota. Todas as brigas, todas as lágrimas gastas desnecessariamente. Tudo que me era importante como orgulho, vaidade, arrogância, ciúmes, posição social, tudo. Tudo ali perdeu o sentido. Telefonei para casa tendo o cuidado de dar ciência, primeiro, ao psiquiatra de Dalvinha, o também escritor e amigo de Ari, Dr. Ricardo Cruz. Depois telefonei para casa, preveni aos de casa das medicações necessária que minha mãe deveria tomar. Andei até um boteco e comprei a carteira de cigarros. Aquele cigarro foi o mais gostoso que fumei na vida. Tomei uma média e fui trabalhar, como sempre, cheguei às oito horas da manhã. Iracema e Mauricio cuidaram do enterro, aconteceu à tarde no cemitério Jardim da Saudade. No enterro, enchi a cara e fui para casa logo que o enterro acabou. Dormi no sofá, acreditando ouvir os toques da máquina de escrever como uma música de ninar. De certa forma, a morte de seu avô mudou em muito minha maneira de ser. Eu dava muita importância a coisas idiotas, infantis, até o medo dela, da morte, desaparecera como mágica. Ari não temia a morte, se tinha medo, nunca deixou transparecer. Ele manteve sua altivez até o último instante. E jamais abdicou da liberdade de ser o que era. “Tirem-me a vida, mas deixem minha dignidade”. Escreveria depois Guido. Guido Guerra escreveu três crônicas para o jornal A tarde, retratando os últimos dias de seu avô. Olhe na caixa, eu acho que recortei. Deve estar junto a uma homenagem que Gominho fez para ele, pegue.
— Pai, você esta chorando? Seus olhos...
— Não. Não estou chorando. Tenho uma saudade sadia do seu avô, não tenho mais idade para chorar. Sofrer é para os jovens. As recordações emocionaram-me... Apanhe as notas. Se não estão na caixa, estão no armário, em uma pasta plástica, verde. Aproveite e me traga também outra cerveja.
Mais uma vez Víviam vai buscar as anotações solicitadas. No retorno passa pela cozinha e apanha a cerveja pedida. Entrega a cerveja ao pai. Abre a pasta e retira o recorte.
— OK. Pai. Vamos lá:
“Na noite de sete de julho de 1988, Ariovaldo Matos fez tudo a que tinha direito: bebeu a última dose de Domecq e fumou o último cigarro — era Charme e deixou o isqueiro verde sobre a escrivaninha. Também verde a máquina-de-escrever, manual, e, nela, a lauda branca. Não cuidou da frase final, mas deixou uma no ar, quando concordou em hospitalizar-se: — Não se chora por cadáver — e me apertou a mão como se fosse uma despedida, o seco adeus de um de seus personagens, talvez o que se punia para sonhar, buscando o impossível para continuar sendo. — Repito que admitira internar-se numa clínica, mas sob condições: desde que não tivesse de ir para o balão-de-oxigênio e muito menos para a UTI — estaria bem onde ninguém lhe perturbasse o sono e a urgência de não adiar as esperanças que cancelara em noite clara como aquela, no silêncio noturno que a avenida Paulo VI já não conserva, transformada hoje em pizzaria a casa que foi seu refúgio: ali, alvo de sua ternura densa e generosa, me revejo sem os cabelos brancos de agora e esta saudade que o faz permanecer intacto na memória. — Na Clínica São Marcos, onde morreu na manhã seguinte, uma senhora de cabelos castanhos, de olhos cor de mel, aproximou-se de seu leito, antes pedindo licença para entrar e, se não fosse importuná-lo, também falar-lhe, perguntou: — Não quer confessar-se, senhor jornalista? — Ele sorriu um riso bom, como amava sorrir, e respondeu-lhe amavelmente: — Eu sou ateu, minha senhora.— Na dura resignação que se impôs, Mestre Ari parecia repetir Faulkner: ‘entre a dor e o nada, eu escolho a dor’, mas seria perfeitamente possível defini-lo como Maiakovski —‘anatomicamente imperfeito, porque só coração’ — Como as estrelas do céu, Ariovaldo Matos, mestre da ternura e da dignidade humana, não morreu: transferiu-se no tempo e no espaço. E vive além, muito além da memória, a permanecer em cada gesto, em cada espanto, e sobretudo no seu entranhado amor aos não-homens, de que nos falava o velho Gorki ”.
—Este texto que você acabou de ler de Guido, foi escrito para uma homenagem a Ari pelo aniversário de um ano de morto.
— Pai, meu avô era ateu mesmo?
— Creio que sim, ele negava-se à religião. Contudo, tinha respeito à necessidade das pessoas quanto a ter religião, ter fé. O Guido simplificou o que seria uma discussão filosófica no texto, não lhe cabia detalhar o que de Ari sabia, e sabe Guido, muito mais que eu. Tem um conto de Ari que fala sobre isso.
— Adorei a crônica de Guido. Ele escreve muito bem, emocionou-me. Pai, e o livro que meu avô terminou na noite de sua morte, ele foi publicado?
— Não... E os originais não estão comigo devem estar com Guido. Quando sobrar uma grana, irei publicá-lo. A tiragem será mínima. Coisa de quinhentos exemplares. Não é leitura para comuns. Quinhentos exemplares se tanto for. Não para colocá-lo à venda. Enviarei um a um para quem saiba saboreá-lo... Tem aquele conto que eu falei do medo, que o personagem fala de religião, quer lê-lo?
— Quero...
— Antes pegue outra latinha de cerveja e uma dose do conhaque...
Viviam se levantou e foi apanhar o pedido do pai, retornou à mesa e começou a ler,
“Ditado e Manifesto
Entre as trevas em que me encontro, neste ditado quero, antes de tudo, saudar o ânimo científico que encoraja meu irmão médico, Ôto. Não é ainda a oportunidade de nomeá-lo. Suficiente esse carinhoso apelido de desconhecidas origens: Ôto.
Deem-me um gole de conhaque: é uma bebida honesta e revigora.
Quero que esta fita magnética registre o som do meu beijo na testa de Bianca, amante, amiga e agora também enfermeira.
Quero, igualmente, ditar duas epígrafes extraídas de obras do senhor Dedda e não é necessário, Bianca, que você busque os livros. Eu as sei de cor. E vou dizê-las pausadamente:
PRIMEIRA EPÍGRAFE
"Alterando, na essência, conhecidos versos de Baudelaire, é o momento de dizer:
Ah! como o mundo é pequeno à luz das lâmpadas
E como é grande aos olhos da recordação!" (Gavino Taviani Dedda in "Ritorno", Ed.Pattuglia, Torino, 1951).
SEGUNDA EPÍGRAFE
"Jamais, e há séculos, a desonra atravessou, para em seguida permanecer impune, a soleira do Palazzo Dedda" (Gavino Taviani Dedda in "Ritorno — II", Ed. Pattuglia, Torino, 1964).
Errei, Bianca?
— Em nada, mas não se emocione.
Repetiríamos tudo, Bianca? Repetiríamos tudo o que aconteceu na Cornuália? Repetiríamos também o que se seguiu?
— Sim, tudo. Repetiríamos tudo. Agora, dite sobre o passado. É a ordem de Ôto e ele sabe o que faz.
Na infância, Bianca, lembro-me de cânticos e festas, raros os episódios dolorosos: fui uma criança feliz. Medos? Pouquíssimos. Amigos muitos e, alguns, maravilhosos. Um deles, Flávio, recebeu-me e à Bianca, faz poucos anos, no seu pequeno apartamento no Recife e ao saber sobre as perseguições que sofríamos, ofereceu-nos acolhida. Permanente, se quiséssemos. Ele e os dois filhos, armados e com especiais precauções, nos trouxeram até este hospital baiano.
É evidente, assim, que se Gavino Taviani Dedda e seus asseclas chegarem a tempo para assassinar-me, em nome de uma honra abstrata, tecida por bárbaros preconceitos, a circunstância de eu ter sido feliz desde a infância não lhe será favorável na hipótese de julgamento. Os integrantes do Júri, nisso insisto, dirão que o assassinado foi uma criança feliz, o que não era e seguramente ainda não é comum. O habitual, o comum, pelo menos naquele tempo, consistia em aprisionar os meninos em pequenos espaços povoados de temores, castigos, constantes reprimendas, imposições grosseiras. Nada disso sofri: a cidade, tão bela, também integrava o meu mundo. Um dos divertimentos do pai de Flávio era o de conhecer as linhas de bondes de todos os bairros e íamos onde desejássemos.
Quando acordava, o mar mostrava-se belo aos meus olhos ávidos de novidades. Mar extenso, azul, e seu generoso corpo era passeado por saveiros e outras embarcações mais simples. Canoas, por exemplo. Canoas dos pescadores de tainhas e agulhas-brancas.
— Agora você está mais calmo, querido. É como deve ser.
Sinto-me relaxado, Bianca.
— Procure narrar usando pausas mais longas. Conte-nos sobre os camarões, conte como você fez na Cornuália. Recorda?
Ah!, os camarões. Como esquecê-los? Arrastados às praias de Itapajipe mediante o uso de redes, eram pequenos, eram miúdos até, mas de sabor insuperável. Que se passa? Que repentina agitação é esta aqui no quarto? As vozes são amigas, mas sinto que o ambiente é tenso. Que está havendo?
— Querido...
Sim, Bianca, sim, diga! Não se esconda nada.
— Há um chamado de Roma para mim. Preciso atendê-lo. É necessário que você prossiga, pausadamente, falando dos camarões.
Nem todos miúdos, quero acentuar. Meu pai os tratava delicadamente, limpando-os de sorte a deixá-los imersos numa grande bacia de flandres. "Para tomar gosto", como mamãe explicava, e eles restavam horas sob o tempero. Depois, eram enfiados em espetos de bambu e assados sob o fogo lento, fogo de braseiros. Que maravilha degustá-los com refresco de pitanga, de manga ou cajá, frutas dulcíssimas que eram muitas no imenso quintal de nossa casa. Disso falei, emocionado, aos companheiros do XXIII Congresso Internacional dos Armadores, abnegados defensores do retorno aos barcos à vela, febris de entusiasmo apesar de ser fria a Cornuália. Disso falei e não escutaste, Gavino Taviani, porque abandonaste tua mulher, abandonaste Bianca, e assim para a busca de prazeres violentos, em Londres.
Sim, Gavino Taviani Dedda, como o mundo é grande aos olhos da recordação e pequeno à luz das lâmpadas!
Nós tínhamos barcos. Em um deles, se quisesse, se a um dos irmãos mais velhos pedisse, poderia ir até a Ilha de Maré, antigo lazareto para escravos vindos da África, e ali vencer, percorrendo-a de ponta a ponta, o principal dos meus poucos medos. Nunca me atrevi. Quase permanentemente ensolarada ou enluarada, para mim a ilha vivia em brumas marrons. Tantos anos passados, tantos contentamentos acumulados, o antigo temor infantil não é apenas herança feita de horas indormidas. Suponho, por isso, que, se noturnamente ainda me fosse possível repousar em qualquer das casas da ilha, ouviria lamentos de negros escravos submetidos ao horror do lazaretamento.
"Ali meu avô morreu de uma febre" — disse à impressionável criança que fui um daqueles idosos pescadores que amanheciam com suas canoas e suas redes, na praia Itapajipana. Dizia "ali" e olhava a ilha.
Para Bianca, o lugar do medo, a ilha, é o Palazzo dos Deddas, numa colina nas imediações de Turim. Espero poder ditar algo sobre esse Palazzo, descrito em "Ritorno".
Sirvam-me mais um conhaque.
Quero deixar registrado, para possível aproveitamento médico, que sinto, de quando em quando, um ardor no olho direito. E assim desde que Bianca saiu do quarto. Talvez eu esteja apreensivo.
— Seria útil o senhor continuar a narrativa.
Quem fala deste modo?
— Um dos meus sobrinhos. Tio Ôto foi quem recomendou: não cessar a narrativa. Ou dormir para recomeçar quando o senhor se sentir calmo, interessado.
Há vinho no quarto?
— Há. Deseja agora?
Não.
— O senhor contava sobre os barcos, os pescadores...
Por que Bianca demora tanto?
— As ligações internacionais não são tão fáceis quanto se anuncia. Mas, como falei, o senhor contava sobre pescadores, barcos, camarões...
Eram gostosos, um gosto inesquecível e há quem diga que não existe memória gustativa. Ora, que tolice! Aqui, em Salvador, na véspera do meu embarque para a Inglaterra, a caminho do XXIII Congresso, na Cornuália, antes, portanto, de um acidente me ter oferecido oportunidade de conhecer Bianca, amigos muito queridos ofereceram-me almoço e havia camarões–no-espeto apenas razoáveis.
Mas foi, aquele, um almoço regado a bons vinhos do Remo e, ao final, houve licores. Ali mesmo escrevi uma carta a Gavino Taviani Dedda, convidando-o para o encontro na Cornuália. Em seguida desejei uma peregrinação e fomos, quatro ou cinco pessoas, à praia do Poço, também conhecida como "a do Perau", em Itapajipe, outrora a mais bela e pacífica desta minha cidade do Salvador, que pretendo seja o derradeiro refúgio diante da implacável e assassina perseguição dos Deddas. Estamos cansados, Bianca e eu, de tantas fugas, anos e anos, desde a Cornuália!
— Não se exalte. Quer agora uma taça de vinho?
Conhaque. Não, não, prefiro vinho. Conhaque excita.
Este é um vinho apreciável. Talvez fosse bom fumar
Obrigado.
Itapajipe... Irritei-me. A casa onde nasci, de exterior forma inalterada, com seus dois andares e o velho portão de ferro, fora pintado de um amarelo agressivo. Mais ainda: o novo proprietário transformara os amplos janelões em simulacros de festas, a querer impedir que os passantes vissem o interior da sala-de-jantar, e, bem mais espaçoso, o interior da sala-de-visitas. Tinham sido duas, antes, as cadeiras-de-balanço. Nelas, janelões abertos, diante de nós e de todos, vizinhos ou não, quem quer que fosse, papai e mamãe permutavam confidências ou risos, animavam nossos diálogos, adotando decisões que nos afetariam — e tudo sem falsa severidade, sem esses contentamentos também condenáveis quando ostensivos.
Mas, eu falava da casa.
Apodrecia, quase desabada, vi a pérgola que alguns dos meus irmãos haviam construído na varanda, florindo-a com jasmineiros e mimos-do-céu. Mais além da varanda, desaparecidas as árvores frutíferas, o quintal estava pejado de galinheiros. Havia até uma pocilga!
No lado de lá, no lado da praia, também a paisagem exibia-se sob violentas agressões, mar sujo, sem o antigo perfume. Perguntei a um vendedor de sorvetes industrializados: "E os camarões, mesmo os bem miúdos?". Respondeu: "Estão mortos, senhor, estão mortos". Identifiquei amargura no seu modo de falar e ele continuou: "As agulhas-brancas, as tainhas, as petitingas. Mesmo as ostras, tão poderosas, estão mortas. Os navios vazam petróleo e o petróleo mata. E há as fábricas: as fezes delas vêm para as águas. Mas, onde existem mangues, a gente ainda pode catar papa-fungos, sarnambis, sururus. Lembra-se o senhor aqueles caranguejos que havia nos mangues, atrás do Largo do Papagaio? É, senhor, também estão mortos. Resta-nos a misericórdia de Deus". Eu disse: uma das razões pela qual Deus permite crimes assim não passa de expediente para Ele alegrar-se no uso de sentimentos como a misericórdia, a piedade. "O senhor é materialista?", o vendedor perguntou-me. Respondi: como poderia sê-lo se falo na existência Dele? E agora acrescento: acalmei, com a indignação, o vendedor e inclino-me a considerar que lhe fiz um bem. Não é útil discutir o dispensável.
Um pouco mais de vinho.
Obrigado. Sim, é um bom vinho. Infelizmente não sei distinguir os melhores dos excelentes e, entre estes, existem os excepcionais. Bianca, sim, Bianca sabe bebê-los e diferenciá-los. Ah, sim, quero ditar que não desdenhei o fato de o homem, em Itapajipe, vender sorvetes industrializados. Se fui áspero, creio ter sido, é que diante da Itapajipe tão violentada nele apenas percebi manifestação de amargura. Não havia protesto.
— No litoral Norte, tio, existem ainda belas praias, talvez tão belas quanto a antiga Itapajipe.
Irão matá-las também. A menos que vocês reajam, sem hesitação no emprego da violência se e quando necessário. Ah, este tema me leva a outro, mais geral e também básico. Ao nos encontrarmos em Cornuália, antes de ele se declarar entediado diante dos rumos que o XXIII Congresso ia tomando, Dedda foi categórico quando me disse: " O melhor do que temos em comum é o nosso amor ao passado. Ao que nele há de pedras e de metais. Amemo-lo com maior intensidade e mais espírito prático". Nada repliquei, mas Bianca compreendeu o meu olhar de reprovação.
Neste ditado quero afirmar que jamais idolatrei o passado e sim que nele amo o que há de bom, não importam as idades, as épocas, os diferentes tipos de civilização. Haja sorvetes industrializados, certo, mas haja também famílias e educandários que recuperem o antigo hábito de sorvetes feitos com frutas frescas e em cantimploras.
Gavino Taviani Dedda ama o péssimo do passado e o ama com perícia literária e o idolatra usando ardis estéticos notáveis. Confesso que, a princípio, com ele me iludi. Atribui-se a uma mulher a seguinte definição para o Marquês de Sade: "ele tem um jeito de falar que faz com que todo mundo se torne sórdido, e sentimos mais vontade de morrer do que estar vivo". Também assim — e os textos de "Rinoto" testemunham — é Gavino Taviani Dedda. Mas, a ele falta o que sobrava em Sade: total intimidade, total associação com o Diabo. É mesquinha, sem nenhuma grandeza, a perseguição que contra nós realiza: tudo o que quer, somente o que quer é nos matar!
— Nesta fase do tratamento, senhor, é mais conveniente falar da infância: as pessoas, as alegrias, os medos, as frustrações, os ambientes, as aspirações, os sonhos, os pesadelos...
Eu me recuso a ser um doente padrão, um sego padrão, um fugitivo padrão. Exijo respeito às minhas singularidades!
— Tio, eu não quis ofendê-lo.
E eu, de minha parte, não devia ter gritado. Você tem sido atencioso. Acertarei outro cigarro e mais vinho.
Obrigado. Ah, ainda sobre nossa casa Itapajipana: ao invés dos móveis de palhinha, notei conjuntos de napa. Quero repetir: napa! Quero esquecer a casa.
Afogado pela poluição brutal, era outro o mar, e suas algas, antes verdes, de mornas penugens femininas, eu as senti oleosas, enegrecidas, roídas por misteriosos produtos químicos. As grandes árvores, ornamentais umas, outras também propiciadoras de frutos, todas potentes para ensejar sombras, muitas, quase todas foram assassinadas pela fúria de especuladores imobiliários destituídos de imaginação e por esses administradores da coisa pública, do bem público, que se transformaram em deificadores do asfalto. Estúpidos! Porque, imbecis, o correto, o humano, o belo, em lugares como Itapajipe, é a utilização de paralelepípedos tecnicamentebem ajustados, aderidos ao solo, com pequenos afastamentos que permitam floresçam as magníficas "gramas-tostão"!
— Senhor, perdoe a interrupção: é que a senhora Bianca manda informar que são magníficas as notícias vindas de Roma.
Bianca, pobrezinha, é uma ingênua. Aparentemente tão forte, na realidade é uma mulher frágil.
Decerto os Deddas tramam nova armadilha. Não quero ditar sobre isto. Um copo de vinho.
Obrigado.
"E os barcos, onde se encontram os barcos?", perguntei ao vendedor de sorvetes industrializados. ele respondeu:"Um que outro às vezes aparece. O resto é tudo carcaça". Itapajipe sem barco, aquela virgindade do mar era de inquestionável impudência. Ou para melhor dizer, impotência. Sem ondas, assim empobrecido de sentimentos afirmativos, o mar do meu amor de infância e adolescência estava moribundo. E me senti triste. Esse estado de espírito, incomum naquela época foi percebido por uma amiga e pouco mais tarde vimo-nos sós na agradável enseada dos Tainheiros, em um bar.
Terei ditado, antes, que vi o primeiro hidroavião de toda minha vida, precisamente ali, na enseada dos Tainheiros? Sim, ali. Alguns dos meus irmãos nadaram na esteira do aparelho, voltando à praia sem qualquer mancha de óleo.
Naquele bar, sob constante brisa, a amiga chorou em meus ombros por um amor que se fora. Enxuguei-lhe as lágrimas e contei-lhe que, dentro de poucos dias, se aceito o convite que eu escrevera ainda quando o restaurante, iria conhecer pessoalmente, na Inglaterra, um dos mais extraordinários escritores italianos do nosso século: Gavino Taviani Dedda. O erudito Dedda de quem estava a traduzir, não sem esforço de recriação literária, uma obra-prima do memorialismo: "Ritorno". E o encontraria no decorrer do XXIII Congresso, em paisagem bastante apropriada, a da Cornuália, de grandes rochedos e elevados penhascos, cujos mares, segundo lendas de pescadores, escondem, sob densas florestas submarinas, imensas catedrais de pedras. Disponho de anotações a este respeito.
Pouco a pouco, valorizando algumas das passagens de Dedda que, então, eu sabia de cor, minha amiga foi recobrando a exuberância de um temperamento alegre que sempre triunfa sobre vicissitudes de toda a ordem, e algumas, bem sei, de agressividade incomuns. Quando narrei que Gavino Taviani Dedda empregara grande parte dos seus 50 anos para reconstruir, pedra e pedra, o Palazzo medieval herdado de ancestrais, muito arruinados pelas transformações que Napoleão Bonaparte introduzira na Itália, a amiga comentou: "É um homem de valor. Mas, por que razão, como você conta, ele odeia as épocas de claridade na Itália". Respondi: não sei.
Agora, porém, nada ignoro.
— Fale de sua infância, senhor, de sua adolescência...
Não force!
Não me force a nada. Existem mesmo, como você disse, no litoral Norte, praias tão belas e puras quanto foram, no passado, as de Itapajipe?
— Sim, é uma secessão de praias: a do Forte, mais além a de Subauma...
O passado, insisto, não é um fardo e tive, antes do conflito com os Dedda, desejo de recuperá-lo no que fosse possível: amo a memória e, na solidão, costumo comemorar bons episódios ocorridos. Em Itapajipe, por exemplo, as lágrimas da amiga reenviaram-me a um dos raros dias em que recordo ter chorado, na infância. Um dos meus irmãos e eu jogávamos futebol com uma bola improvisada e o fazíamos na varanda que alcançávamos através do portão de ferro. Situada à entrada da casa, a varanda era, para nós, um dos mais alegres sítios, porque espaçoso e ensolarado, traço de união entre a praia e o quintal. Do segundo andar, bem alto, alguém avisou: "Meninos, saiam daí que vou jogar a trouxa".
Era uma grande bola de roupas sujas, toalhas, cuecas, camisas, essas coisas, enroladas num lençol largo, "o lençol do casal". Quando foi atirada lá do alto, meu irmão, querendo-se goleiro, tentou apará-la com arrojo e a elegância de um Planicka — e o impacto quebrou-lhe os pulsos. Não gritou, mas compreendi imenso espanto, nele o medo incrustado, ao ver caídas as duas mãos, e chorei. Ele ordenou: "Vá chamar Ôto!"
É o mais velho dos nossos irmãos, dele já falei nos inícios deste ditado. Concluindo o curso de medicina, estudava em alguma parte da casa, mas não me lembro se a ele apelei. Suponho que não: o pior do medo é que nos desarma, nos subjuga, nos enfraquece e, desse modo, por via de conseqüência, o inimigo, seja quem ou o que for, torna-se mais poderoso. Talvez eu tenha gritado, não sei.
Vejo-me na praia, sozinho, encostado numa catraia encalhada, chorando — avaliem esta alegria! — uma morte que não houve, graças a Deus. Sinto-me acariciado pela mais idosa das irmãs e, agora, meu paladar delicia-se com o gosto da "manga-espada" que me oferta. "Ninguém vai morrer — ela diz. Ôto garantiu que tudo está bem".
Todos temos nossos heróis, Gavino Taviani Dedda! Os teus — e um dos poucos, Wilson, deixou rastros que encontrei —, os que celebras com palavras arrancadas ao sangue impuro, ao ódio socialmente inconseqüente, à vingança brutal, remontam ao primeiro século após Jesus, e nenhum deles é simples. Risivelmente trágicos, sequer chegam a ser alguns desses construtores dos cipoais de equívocos, cevados pelas generalizações de canhestros eventos, os quais, como crônicas históricas, limitam-se às sucessões de reis, aos pormenores de batalhas que produzem as exaltações dos idiotas!
Este perfume... É você, Bianca?
— Sim querido, sou eu. Há ótimas notícias.
Sinto sua alegria, ela ativa seu perfume, mas não interrompa.
— Querido...
Não me interrompa! Quero conhaque e cigarro. E silêncio, eu quero todo o silêncio possível.
Obrigado. Seja o que tenha acontecido em Roma ou no inferno, quero ditar ainda o seguinte;
És um desses antiquários sebentos, Gavino Taviani Dedda. Em "Ritorno", ao descreveres os saturnos e úmidos interiores do Palazzo que reconstruíste na busca de glórias enfermas, fosse honrado como estudioso. Quero dizer, foste objetivo, fiel aos documentos encontrados, os códices, e tanto que estiveste na iminência de diagnosticar a tua moléstia principal e as dos teus antepassados. Da verdade tão próximo chegaste que quase te foi possível compreender as razões de Bianca fugir, desesperada, dos teus escuros salões, dos imensos corredores, das limosas escadarias. E saiba: ela ainda te respeitava como marido quando a reencontraste na humilde hospedaria de Portofino.
— Querido, tudo mudou!
— Tio Ôto pede que ele continue ditando, senhora Bianca. Acalme-se.
O tempo e a História, Gavino Taviani Dedda, não perdoam os que os acreditam senis, trôpegos, paralisados, repetitivos. Tempo e História exigem-se incessantemente renascidos, na substância e na forma, preservadas suas essências vitais.
Meu herói familiar, Gavino Taviani Dedda, não é Wilson abestalhado pela ânsia do Poder. É esse irmão médico, Ôto, homem simples e por isso poderoso, a acreditar-se capaz de devolver-me a visão, anular esta cegueira causada pelo cansaço de tua perseguição. É surpreendentemente capaz na medida em que se sabe das técnicas terapêuticas atuais, respeita a sabedoria de antigos procedimentos: ele não vasculha a alma e sim apalpa.
O que agora dito é também uma ata de acusação contra tu e teus sicários. E é um testemunho para o restabelecimento da verdade. Porque Bianca e eu, no início, só tivemos a culpa da mútua simpatia: contra os teus, defendemos idênticos pontos-de-vista sobre a civilização e progresso. Mentes, Gavino, calunias quando no capítulo "L'altezza d'ingegno", em "Ritorno — II", afirmas que Bianca simulou um "escorregão" durante a visita que os partícipes do XXIII Congresso fizemos aos Grandes Penhascos da Cornuália. Na verdade, ela morreria, espatifada nas pontiagudas pedras, se o dr. Perrand e eu não a amparássemos, com o risco de nossa próprias vidas: ela estava desolada com tua repentina ausência.
É verdade e todos viram: eu beijei as alegres lágrimas choradas por Bianca ao ver-se salva. Igualmente é verdade que me embriaguei de afetividade ao beber aquelas lágrimas. Por que suas mãos estão tremulas, Bianca? Desejo vinho e quero que você prove desta marca.
Obrigado.
— É um vinho razoável, querido. Talvez mais do que razoável.
Quero ditar mais uns dois ou três episódios da minha infância: eles é que me fizeram mais simpáticos à Bianca e aos convivas do XXIII Congresso Internacional dos Armadores.
Um parêntesis, Bianca, sobrinho, todos: os antigos pescadores e gentes das praias de Itapajipe, desde a penha até o Bonfim, diziam Ilha da Maré e não Ilha de Maré. Ignoro porque. Sei que, isto sim, certa noite, acordei com pesadelos, acreditando ter ouvido lamentos de negros escravo. E acordei chorando. Uma das irmãs acudiu-me e dormi, sono que me revigorou para as traquinagens da manhã seguinte. Quase um poema em prosa, as soníferas certezas ditas pela minha irmã foram mais ou menos as seguintes:
Dorme que teu barco é sólido.
Esta casa de tijolos, pedra, cal e óleo de baleia.
Dorme que estás seguro em teu barco de pedras.
Dorme que apesar da tempestade prometida.
Dorme no interior da tempestade, de punhos cerrados.
Dorme e teu barco de pedras te levará à Ilha.
E então, conhecendo-a, vencerás o medo.
Tiveste razão, Gavino Taviani Deddas, ao alterar os versos de Baudelaire. De igual modo quando, no capítulo inicial de "Ritorno", tua preocupação foi a de cantar pedras mortas frias, assinaste uma verdade essencial: "com a magia e as armas da recordação, somos senhores". Sim, isto é verdade. Em Cornuália, ao receber de Londres o seco telegrama no qual anunciavas tua ida para Hamburgo e à Bianca ordenavas retorno ao sombrio Palazzo, o medo aos marrons de tua alma e aos de tua fortaleza deu-me coragem para propor uma fuga. Não hesitei muito e Bianca, ao aceitar, avisou que seríamos perseguidos, acossados, pelos sicários, tu mesmo a comandá-los, se necessário. Minto, Bianca?
Não. E agora sabe-se melhor o gosto do vinho.
Teus assassinos , Gavino Taviane Dedda, inclusive teu próprio irmão, Giancarlo, nós os despistamos em Londres, com a inestimável ajuda do Dr. Perrand. Onde está Ôto? Quero que ele ouça, pessoalmente, esta parte.
— Ele foi dormir, hoje, na Ilha de Maré, tio.
Por quê? Responda, Bianca: por quê?
— Não sei, querido, mas em face das notícias de Roma já enviamos uma lancha veloz para buscá-lo. É ótimo, este vinho. Lembre-se, querido, que de Londres, no avião particular do Dr. Perrand, fomos para Bruxelas.
E, depois, Paris. Sim, concordo.
— Tio, por favor, fale da infância,da adolescência, dos pescadores de Itapajipe, de vovô, de vovó...
— Há tudo isso no que está ditando, jovem. A criança que fomos nunca nos deixa.
Ah, Bianca, você é maravilhosa! De Bruxelas a Paris. Sinto-me alegre. A sensação, Bianca, é a de que agulhas sujas que me enfiaram no corpo estão saindo. Lentamente. Mais vinho, por favor.
Obrigado.
De Paris, sempre fugindo, fomos à Romênia, um belo País, e então conseguimos paz para algumas noites de amor sem pressas e de sonhos em pesadelos. Assim porque antes da Romênia, sempre atemorizada, Bianca suspeitava das cidades mais populosas. Na Romênia, não permanecemos mais que algumas horas em Bucareste. Cedo, em um veículo que amigos do Dr. Heron Perrand, nos haviam conseguido, partimos para o campo. Ou isto aconteceu durante nossa estada na Hungria, Bianca?
— Na Romênia, com certeza.
Em um campestre amanhecer romeno, o automóvel alcançou uma aldeia. Esqueço-lhe o nome. Importante é registrar que ali conhecemos a chamada "Igreja Negra", de amplos janelões para vitrais que vivificavam as luzes vindas do exterior. É um templo e é uma festa.
— As pessoas rezavam, manhãzinha, mostravam seus trajes coloridos. Havia, apenas, uma mulher vestida de negro, ao lado do homem de longos bigodes que usava uma túnica. Baixote, olhos de mongol, severo, fervoroso na sua religiosidade.
Prossiga, Bianca. Você está ditando muito bem. Sua voz é de uma jovem alegre. È quase a mesma voz que ouvi na Cornuália. É o milagre do vinho?
— São as boas notícias de Roma. Mas seu irmão Ôto, já a caminho, pediu-me que nada diga antes que ele chegue.
Porque é experiente. Porque advinha, como eu, tratar-se de nova cilada dos Dedda. Você esquece que eles anunciaram em toda Europa a morte de sua mãe, em Gênova, querendo atraí-la e a mim?
— Tio, por favor, dê continuidade ao ditado. O senhor encontra-se sob tratamento e...
A Romênia me encantou. Sinto-me sonolento. Me acenda um cigarro, Bianca. Ah, como é doce a sua saliva. Doravante você acenderá, salivando, todos os cigarros que eu pedir.
A "Igreja Negra". Repito: é um templo e é uma festa. Sua fama vem dos fins da Idade Média, aí por volta de 1410 ou 1420, não tenho boa memória para datas. Nela abrigados, os aldeões resistiram a fúria dos bárbaros chefiados por um certo Wilson, cognominado "O Ruivo". Nos inícios das noites, liderados por Oton I — dou ênfase ao nome deste herói: Oton I! —, saíam os homens e mulheres que municiavam com fé e esperança os guerrilheiros espalhados nos bosques, deles recebendo alimentos, agasalhos, convicções. Muitos e muitos meses assim agindo, impuseram-se aos invasores, expulsando-os. Wilson, "O Ruivo", um dos ancestrais dos Deddas, morreria anos depois, já decrépito, abobalhado por força de sucessivas derrotas, no assédio a Constantinopla.
Os tijolos da Igreja — lembra-se, Bianca? — ainda têm as marcas impressas pelas fumaças, dos muitos incêndios que destruíram a aldeia hoje reconstruída. O fogo e a coragem, o fogo e a amizade, o fogo e essas indefiníveis certezas que o amor produz, escreveram naquelas exteriores paredes da Igreja muitas lições. E gravaram uma palavra, incompreensível para Deddas e Wilsons, palavra que é forte e maviosa em qualquer idioma: Dignidade.
— E gravaram outra palavra: amizade.
Ôto, irmão, você está aqui?
— Nunca deixei de estar aqui e este é o momento de lhe dizer que os Deddas, Gavino e Giancarlo, estão mortos.
Onde?
— Na Espanha.
É outro ardil deles, outra armadilha.
— Não é. Um avião que fretaram com destino ao Brasil caiu em mar da Espanha. Gavino, Giancarlo, todos os serviçais. Todos identificados.
Então, Bianca, foi uma farsa a ligação internacional com Roma.
— Não foi, querido. Se sou viúva de Gavino, e sou, tinha o direito de exigir que seu corpo e os corpos dos demais fossem transportados para Salvador. E estão sendo. Para serem enterrados na Ilha de Maré.
Há claridades nos meus olhos, Ôto. Mande que arranquem estas vendas.
— Não.
Tenho certeza que já posso ver. Mande arrancar estes esparadrapos, estas gases!
— Não.
Bianca, querida...
— Não.
— Você deve ir assim como está até Ilha de Maré. Para assisti-los enterrados sob lama, pedras, poeira, algas podres, mariscos e peixes mortos. E lascas de madeira podres, e pedaços de asfalto.
Bianca, amor... mais vinho
— À vontade.
Obrigado.
Fim.
— Eu gosto deste conto. Cornuália é ótimo.
— Pai, tem algum conto seu dirigido para crianças, adolescentes...
— Tem. O palhaço. É curtinho. Mas ta escrito a mão. Apanhe esse caderno que está ali...
— Este.
— Sim.
Zé Ricardo folheou o caderno até encontrar o referido conto e entregou a filha enquanto bebia cerveja intercalado goles de conhaque.
“O Palhaço.
Trajado com enorme calça florida que comportaria três pessoas de peso equivalente ao dele, tendo costurado na altura da cintura um bambolê por entre o cós da calça e seguro por suspensórios verdes que sobrepunham camisa de seda amarela, ornada com grandes círculos coloridos; Florentino sentou-se em frente ao espelho.
Com o coração apertado, relembrou pela zilionésima vez do dia em que se despediu de casa. Deixara para trás a mulher que amava e nela os olhos lacrimejantes. Eram especiais aqueles olhos transparentes, vítreos, com apenas leves intenções de azul que lhe expunham, sempre, os sentimentos mais profundos.
Enquanto empastava o rosto com pigmentos coloridos, recordar-se-ia, igualmente, do açude seco, do gado morto, da fome que passara e da dor que sentira ao deixar o sertão baiano motivado pela seca. Partira junto aos mambembes para São Paulo carregado por sonhos de melhores dias. Esquecera-se apenas da promessa feita à mulher de olhos vítreos que retornaria para buscá-la.
Eram sempre as mesmas lembranças torturantes que martirizavam seu espírito, e nem mesmo o peso dos anos turvou-lhe da memória o gosto do pó, nauseante, na boca árida.
Aplausos longínquos vindos da tenda principal e o tique-taque do relógio sobre a penteadeira apressaram-no na composição da caricata figura. — O retoque, dado a lápis, na maquiagem, enegrecia os contornos dos desenhos pigmentados. — Calçou-se rápido com os descomunais sapatos pretos. Colocou o nariz vermelho preso por um fino elástico, transparente, que findaria a formação da figura dramática, não fosse o vazio da calça, onde andando, preencheria com bexigas coloridas às quais enchera pacientemente com ar, confetes e purpurina na noite anterior. — Concluída por definitivo a personagem, o Palhaço Zequinha rompeu o picadeiro dando saltos e fazendo piruetas.
As piadas encenadas, as gargalhadas, as bexigas cheias de confetes, ar e purpurina que eram estouradas e distribuídas no auditório. Ou ainda os refletores e os trapezistas que flutuavam sobre sua cabeça, não impediram o aperto no peito ao ver na primeira fila da arquibancada os mesmo olhos límpidos que a pouco recordara. As lembranças retornaram dilacerantes. O Palhaço reparou, também, numa criança ao lado da mulher de olhos vítreos, como se ela, a criança, renovasse-lhe as feições... Seria?
O palhaço voou em direção ao casal. Os olhares mais uma vez se cruzaram. Contudo, desta vez, a densa maquiagem não o protegeria da pergunta explodida da senhora de olhos cintilantes, quais vitrais, com leve caráter azul:
— FLORENTINO?!
Paralisado ficou o palhaço. Braços abertos estendidos no ar. A criança não esperou resposta, levantou-se e pulou a pequena balaustrada. Os seguranças tentaram contê-la. Não conseguiram... Um abraço forte... Um grito:
— PAI?!
Aplausos! Muitos aplausos à custa de uma vida em meio a saudades...
— Pô, pai... Arrepiou... Acho que o senhor não devia ter parado de escrever.
— Sou amador... Se seu avô escrevia maravilhosamente bem, morou anos na Europa, era jornalista profissional, não ganhava dinheiro como escritor, não vou ser eu que vou ganhar...
— Como você mesmo disse, pai, dinheiro não é tudo. Vou ler o conto que mais gosto de meu avô Ari.
— Leia.
“Rosa tem febre demais
Espero a madrugada e visto minha roupa de sonho. Depois, sem que minha mulher desperte, ganho as ruas de silêncio e caminho passos de quem foge, aproveitando manchas de escuridão, sombras que grandes árvores projetam.
Agora atinjo as avenidas centrais. Luzes ferem os meus olhos e passam os boêmios e as prostitutas. Alguns param e olham minha fantasia de sonho — as longas barbas brancas, o vermelho manto bordado de arminho, negras botas que confundem meus pés com o asfalto. Olham e seguem e caminham, e mais rápidos são os passos porque agora sou esperado e é hora de chegar.
Mais além, no largo, antes da ladeira, estão os motoristas. Dizem coisas pornográficas, contam episódios de sangue, mas eu caminho e passo e eles fazem silêncio quando me vêem. Alguns, os mais velhos, atiram moedas no asfalto e eu as recolho e seus olhos me acompanham enquanto, na outra esquina, encontro a ladeira e vou começar a descê-la. Então, voltam aos temas de antes e terei sido um sonho rápido ou um pesadelo.
Na ladeira eu paro e meus sonhos de olhos penetram todos os lares e levam luz para as águas do rio e do mar. Eu chamo os peixes mais belos e mando que façam leitos de conchas e algas e neles deitem todas as crianças. Desperto os pássaros e ordeno-lhes um teto de penas sobre a terra, sobre o rio e sobre o mar. Às ondas peço silêncio, às pedras mando parar, peço à lua que se imobilize e peço às estrelas mais piscar. De longe chegam os pescadores, com seus fifós, suas redes, suas canções, suas velas, os olhos de suas amadas, o imenso desejo de amar. Suplico que façam rodas e cantem cirandas em louvor de Iemanjá. Peço lágrimas ao orvalho...
— Vem, nós te esperávamos.
A pequenina e escura mão é quente e firme e nela eu me equilibro, passo a passo a ladeira desço.
Na praia
eles dormem e agora, despertos, é a mim que esperam. Eu chego e pedem as
bênçãos e fazem filas para minhas mãos beijar. Depois sentam-se e fazem roda e
eu lhes aponto os grandes navios, pesados de mistério e silêncio.
— O mar é grande — eu digo — e não escolhe terras para banhar. É grande, amigo,
igual ao céu só o mar.
São crianças, acreditam, e eu falo de minha intimidade com as coisas do céu e do mar. "Sou amigo de Deus, afirmo, e Ele em dia há de fazer o que eu mandar". De repente. eu pergunto:
— Que pedido vocês fariam para eu a Deus ordenar?
Eles silenciam e eu insisto:
— Querem rosas ou outras flores? Querem brinquedos, novos amores ou no céu caminhar?
Eles nada respondem, apenas me olham.
— Não gostariam — pergunto — de um imenso navio sobre o rio ou sobre o mar? Seria um navio de mil cores, feito de nuvens e de flores, feito de mirra, incenso e âmbar.
— Vem — diz-me o garoto — nós te esperávamos.
Agora a ladeira acaba e são as estreitas ruas que despontam. Liberto-me da pequenina mão e abraço o garoto.
— Hoje — falo — muito pouco pude trazer.
— Não importa — responde — não queremos teu dinheiro. Queremos tuas histórias, tuas cantigas de ninar. Rosa tem febre, não dorme, e ontem Neco fugiu.
— Rosa tem febre? — pergunto.
—Sim, Rosa tem febre demais.
Os passos são mais rápidos, Rosa tem febre demais. E à medida que caminho todas as estrelas me seguem, todos os peixes e as lebres, as cobras e os pardais, é preciso chegar a tempo, Rosa tem febre demais. Eu a encontro e ela delira, os lábios estão roxos, os olhos parecem de sangue e eu mando a morte parar. Chamo os ventos e mando que a ergam, chamo o mar e mando que limpe aquele lugar, chamo os pássaros, chamo as flores e chamo os anjos a cantar. Os ventos a embalam, os pássaros tecem uma rede, uma rede de penas e luar — e Rosa nela se deita, a vida toda refeita, sorrindo para a morte que morre a estertorar. E digo "Rosa, filha" e ela ouve, seus olhos estão limpos, são outros olhos de Rosa a amar a nova vida que eu pude com a força do sonho criar. Eu sorrio, e ela responde, o mar todo de gozo se esconde e os ventos alegres vão passear. A morte ali fica parada, morta e eu caminho...
— Rosa tem febre demais.
De novo sinto as mãos pequeninas, agora é perto, é hora de chegar. Vejo Rosa, está deitada e em torno os garotos, em silêncio, estão parados a olhar. A febre queima e eu peço, mas os ventos não me vêm ajudar. O mar continua quieto, os anjos para longe fugiram, fugiram os pássaros e as cobras, fugiram também os pardais. De Rosa a vida foge, eu imploro a Deus que venha depressa, venha a Rosa ajudar. Ninguém ouve, ninguém atende, os meninos me olham — têm medo — a febre de Rosa é demais. É noite e não conto histórias, não prometo navios de incenso e mirra, flores e âmbar. Carrego Rosa nos braços, a vida não deve parar. Corro e arfo, gosto de sangue na boca, subo a ladeira de pedras e os garotos atrás. Um carro logo aparece, no largo, outro lhe vem atrás. Rosa carrego e corremos sobre rodas, eu e Rosa, os garotos atrás. Agora a manhã vem chegando, no Hospital eu espero, a gente do dia passa e olha minha fantasia de sonho. Os meninos, em torno, me escutam e eu repito "Rosa tem febre demais". O doutor vem e eu me levanto:
— Doutor, e Rosa?
— Já não tem mais febre. Sim, ficará boa.
Há espanto nos seus olhos, ao ver minha roupa de sonho, meus olhos de sono e sol, e com os garotos eu saio, cantamos pelos caminhos e de repente eu me imagino, distante, longe demais — eu e Rosa caminhando sobre nuvens, os meninos sobre as estrelas, distantes a terra e o mar, as cobras e os pardais...
Agora é dia e eu volto, não há silêncio nas ruas da manhã que se faz. A mulher me espera, mas não briga. Arruma na mala minha roupa de sonho, traz-me um café e mostra o relógio. Avisa:
— Dorme, depois te acordarei e ao trabalho em tempo chegarás.
Estarei feliz quando acordar. E sorrirei de verdade porque poderei contar, algum dia, para as crianças que me esperam, nas vésperas dos natais, a história de Rosa
— menina que um dia teve febre demais.
Fim
De repente ouve-se um grande barulho. A empregada, assustada, grita do quarto.
— Seu Zé. Dona Dalva caiu de novo... Corre aqui.
Zé Ricardo corre para o quarto, retorna a sala e pede, pelo telefone a vinda de uma ambulância. Apavorada, a filha fica atônica. Zé Ricardo retira da carteira R$ 200,00 reais, manda a filha ir ao shopping, diz: “almocem por lá e depois levem Ricardinho para casa de sua mãe. Eu pego ele lá. Vá logo.” Viviam sai. Zé Ricardo, enquanto aguarda a chegada da ambulância, com muito esforço e ajuda da emprega coloca a mãe na cama, desmaiada.
Salvador, 21 de junho de 2022.